Este trabalho deveria ser apresentado no enquadramento da série de palestras levadas a cabo na Universidade Católica, sob organização da Associação Cabo-verdiana e da Embaixada de Cabo Verde, no passado 12 de Dezembro...Como o autor, por motivos assaz ponderosos na conseguiu estar presente e na dúvida de que tenha sido divulgado, aqui o deixamos para conhecimento de quantos se interessam pelos problemas do centralismo, regionalismo e... outros "ismos"!
Do Centralismo Democrático, da descentralização/regionalização e dos ismos...
Há largos anos, li, em Coimbra, da biblioteca dispersa pelos “repúblicos”, por medida de segurança anti rusgas da PIDE, da Real República os 1.000-y-Onarius, O Contrato Social, de Jean Jacques Rousseau, tendo-me passado despercebido que o filósofo, que conhecemos do liceu ao estudar os precursores da Revolução Francesa, talvez fosse o primeiro a defender a teoria do Centralismo Democrático, claro que sob outras vestes. Partindo do princípio de que a autoridade do Estado idealizado por ele emana da “vontade geral”, de “todo o povo”, argumentava – de resto como F. Engels, na sua célebre “Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra” -, que mais nenhuma manifestação de liberdade individual devia ser tolerada posteriormente ao acto constitucional fundador. Muito recentemente, o comentador político e Prof. João Carlos Espada recordou o mesmo facto no jornal Público.
Na minha juventude - minha e de alguns amigos-do-peito, tendo alguns virado políticos e governantes após a nossa independência -, estivemos entusiasmados com uma ideia inviável – o comunismo – de ideais nobres, mobilizadores, que empolgaram quem os conhecia através da bem urdida propaganda política e habilidade de dissimulação ideológica; admirámos homens que julgávamos íntegros e idealistas, em verdade sinistros; mais tarde, fechámos os ouvidos, demasiadas vezes, para não ouvir falar num número infinito de crimes, que não acreditávamos que pudessem ter sido praticados pelos nossos ídolos políticos. E isso aconteceu por termos vivido num regime – o chamado Estado Novo - sem liberdade as mais elementares, opressivo e policial que também navegava na mentira, que conhecíamos e nos impedia de confiar no que nos contavam, até por não nos ser permitido visitar países comunistas nem aqueles onde existia a vera democracia e liberdade de expressão do pensamento. Sabíamos, por viver nele, que o capitalismo não proporcionava a igualdade, e julgávamos que o comunismo o fazia. As soluções colectivistas da experiência soviética não podem ser repetidas porque, ao igualarem por baixo, mataram a liberdade e esta morte liquidou a igualdade tentada. Custou-nos a entender isso, argumentando até que fracassou por os seus intérpretes serem ruins. Afinal de contas, não havia outro, não há nem parece haver outro.
Distribuir sem lucro está fora do sistema capitalista, distribuir com lucro para alguns, como faz o neoliberalismo, deixa de fora milhões de desempregados e famintos. O mercado, de que tanto se fala e condiciona tudo nos nossos dias, prefere inutilizar os excedentes a distribuí-los. Os governantes neoliberais actuais do capitalismo financeiro aconselham a não irritar o mercado (para evitar o seu nervosismo, que significa tão-somente estar ávido de mais lucros). Damo-nos, pois, conta, de que a riqueza concentra-se em cada vez menos mãos e empresas e o salário distribui-se por cada vez menos trabalhadores, o que significa que a miséria e a fome se distribuem por cada vez mais gente e bocas. A fome, a exclusão social e o desemprego aumentam exponencialmente com o aumento global da chamada “riqueza das nações”, e não o contrário, como nos garantiram e continuam a querer convencer-nos.
Dessa minha vivência, conhecia de ginjeira o centralismo português, que entravava as iniciativas das administrações regionais e locais, as tentativas de descentralização, tendo por consequência o avolumar da burocracia. Somente muito mais tarde, já em Cabo Verde, na pós-independência, é que reencontrei o centralismo a que se acrescentou o adjectivo democrático, mas com domínio do poder político, económico e social condensados no Partido único PAIGC/CV, que pessoalmente até achava justificável no início da independência para garantir uma definição mais firme, dirigida e controlada do nosso percurso, mas por tempo limitado e não quinze anos, como durou, com o desgosto de ter de tolerar dirigentes amigos que se tornaram arrogantes e intractáveis, de resto, características de dirigentes de partido único. Não obstante esses inconvenientes dei o meu contributo com aquele orgulho a que se refere o nosso vate popular Manuel de Novas, e sem me queixar dos sacrifícios consentidos, num dos períodos mais difíceis e exigentes do país, mas gratificantes sob o ponto de vista profissional e um pouco ideológico.
Mais tarde, o poder foi conquistado pelo MpD na primeira eleição multipartidária, e soprou uma lufada de ar fresco em termos de liberdade, justiça, direitos e esperança de vermos atendida a opinião e o contributo da sociedade civil na nova política, realmente concretizada de modo satisfatório na primeira legislatura. Porém, benefícios e esperança de pouca dura, porque, quando, após novas eleições, o novo regime obteve maioria qualificada – que é uma tentação para a tirania da maioria -, voltou a arrogância e o centralismo anteriores com tendência a caminhar a par com uma degradação progressiva do comportamento e mentalidade dos quadros e a esquivar-se ao cumprimento de normas regulamentares e éticas e a conviver, sem rebates de consciência, com inclinações corruptivas.
Embora tenhamos passado a viver, teoricamente, em multipartidarismo após o regresso ao poder do PAICV - que fez a travessia do deserto sem se redimir completamente de pecados passados -, para alguns militantes e governantes, o antigo partido único continuou a funcionar como membro fantasma, isto é, à semelhança de uma perna ou braço amputado, mas que se continua a sentir como se existisse. Fenómenos de natureza ideológica podem estar em actividade em sectores da vida política, administrativa ou social sem que se esteja numa sociedade de partido único. Temos vivido, em Cabo Verde, numa situação similar, o que vem dificultando o diálogo, as reformas e contribuído para a surdo-mudez dos governantes, o que me levou a dar o título de ÊS CA TA CDI! a um livro, estando outro no prelo, igualmente crítico, situação que propícia o oportunismo, a subserviência e a obediência, esta uma diminuição de valor e de dignidade. A obediência, mesmo a camuflada em disciplina partidária indiscriminada ordenada de riba, é dos frutos do despotismo o mais venenoso. O homem que obedece avilta-se; o povo que o faz deprava-se e dissolve-se, como bem escreveu Ramalho Ortigão em As Farpas.
Como resolver o imbróglio e a actual crise em que estamos? Em primeiro lugar, deixar de salivar os lugares comuns do centralismo democrático já caduco e abrir o espírito a influências novas dialogantes. Em seguida, isso no contexto geral da crise global, tentar encontrar uma maneira de harmonizar o sistema que sabe produzir com o que consegue distribuir, que se invista na criação da sociedade solidária, refutando a de vencimentos obscenos para alguns apparatchiks. Não será fácil, mas há que tentar, porque a pobreza e o desespero levarão os povos a revoltarem-se, como aconteceu na Revolução francesa. Foi o velho sage maliano Hampaté Ba quem afirmou não haver pequenos fogos, mas tão-somente falta de combustível.
Haverá alternativa ao centralismo? Certamente que sim. Infelizmente, os políticos falam à boca cheia nela - na descentralização, a complementar com regionalização -, mas somente nos períodos eleitorais para, depois de obterem o poder, a remeterem para as Calendas Gregas.
Falámos já bastante da regionalização, nós do Movimento para a Regionalização de Cabo Verde, na diáspora, o Grupo de Reflexão para a Regionalização, sediado em S. Vicente, e mesmo o actual Presidente da República, o MpD e a UCID, e o nosso Movimento reuniu em livro os contributos mais importantes. Pena foi que a tão esperada Cimeira sobre a Regionalização, que não respeitou a nossa sugestão de ser um estudo por uma comissão multidisciplinar e plurissectorial independente que estudasse a sua viabilidade a Cabo Verde, não tivesse lançado um olhar interessado sobre o conteúdo deste livro, na falta do livro-branco prometido pelo Governo, nem convidado ninguém do Movimento para o debate, estando até um deles em S. Vicente. Preferiu-se consumir o tempo a ouvir queixumes sobre o mau municipalismo sem mesmo lhe fornecer alguma mezinha para os seus achaques, a não ser recentemente - promessa de novos estatutos, quando os anteriores nem foram aplicados como convinha.
Parece mais do que evidente que o municipalismo praticado funciona mal e parcamente por se basear em repartições desconcentradas, e não descentralizadas, sempre atento ao assentimento, quando não ao deferimento dos ocupantes do Palácio da Várzea, sem a seiva do poder autárquico autónomo.
Com a regionalização haveria revitalização do poder local e regional, o primeiro um tanto semelhante ao existente durante a vigência da Primeira República, mas sem o estorvo partidário impositivo que o comprometeu, dado que, até agora, os eleitores não elegem deputados ou autarcas, limitando-se a ratificar as escolhas impostas pelas cúpulas partidárias.
Os nossos governantes ainda não se deram conta de que o entretenimento de cidadãos com falsas soluções, alienação através dos meios da comunicação de massa, sobretudo da TV, discursos e recados encomendados, telenovelas ruins, futebol em série, estando o cabo-verdiano mais bem informado sobre as peripécias futebolísticas portuguesas do que sobre os problemas cruciais nacionais. Tenta-se, com isso, adiar a reacção do povo que já vai manifestando algum interesse em participar politicamente e experimenta mesmo, por ora esporadicamente, sentimentos de rebelião que contrapõem a sociedade civil à classe política e os eleitores aos eleitos. Por outro lado, em simulação de soluções e reformas, publicam-se leis a granel com a displicência de quem enche chouriços, criam-se instituições inoperantes, distribuem benesses aos mais devotos fiéis que só sabem dizer yes sir, tudo para continuar a reter poderes que deveriam descentralizar e repartir.
A regionalização exige reformas do aparelho do Estado, incluindo o sistema eleitoral, onde reside uma das raízes do problema. Num sistema proporcional, como o nosso e o Português onde se inspirou, são as elites partidárias, não os eleitores, quem escolhe os deputados e, indirectamente, os governantes. Nas eleições com base em círculos uninominais, pelo menos os eleitores conhecem e sabem em quem votam e podem pedir-lhes conta quando eleitos. Não me parece heresia maior o regresso ao presidencialismo como preventivo para a sua assunção pelo Primeiro-Ministro.
Presumo que todos estão de acordo que o país, para restaurar os princípios da decência social e os seus bons hábitos e costumes, necessita de revalorizar a família, a escola, a igreja, a autoridade e a consciência moral, que ainda são factores de preservação de valores e de regulação de comportamentos. Tarefa ingrata porque até a polícia e o exército entraram em processo de desgaste e o repositório de equilíbrios e valores tradicionais que era o mundo rural antes do êxodo rural, cada vez mais uma saudade. Além do mais necessitamos urgentemente de um novo modelo de desenvolvimento e uma real partilha do poder. Temos referências fundamentais políticas, culturais e humanas onde nos apoiarmos, desde os mais antigos, alguns, Nativistas, cabo-verdianos, filhos da terra – Sena Barcelos, Luís Loff de Vasconcelos, Eugénio Tavares, Pedro M. Cardoso, Viriato da Fonseca, João Augusto Martins, Abílio Macedo, Senador Vera Cruz, José Lopes, o sábio Roberto Duarte Silva, o benemérito Dr. Júlio José Dias, entre tantos outros –, e menos antigos, alguns, do Movimento Claridoso – Baltasar Lopes, Aurélio Gonçalves, Adriano Duarte Silva, Jorge Barbosa, Maestro Alves dos Reis, Manuel Lopes, Amílcar Cabral, H. Teixeira de Sousa, Arnaldo França, Félix Monteiro, António Carreira, João Cleofas Martins, entre muitos outros –, e mais recentes, que não cito com receio de omitir alguém.
As sugestões e contributos para a mudança – para as reformas necessárias visando a execução da verdadeira descentralização e regionalização – são tarefas de todos os cidadãos motivados, residentes e da diáspora da sociedade civil, onde germina a curiosidade, fervilha a indignação contra a injustiça, se aceita o risco calculado, onde há o respeito pela diferença, confiança no mérito e na experiência vivida, sempre superior a ideias feitas. Quiçá, devido à existência dessas mesmas qualidades, as organizações da sociedade civil são vistas com desconfiança pelo Poder e se procura calá-las. Restam-nos poucas ilusões quanto ao interesse geral dos altos funcionários do Estado e dos partidos políticos, que deveriam ser constituídos por cidadãos que os representassem condignamente, porque, nos últimos tempos, face ao declínio da confiança no Estado, parece que o que mais os motiva e dignifica são interesses pessoais, sentindo-se superiores aos demais cidadãos. Uma elite que enriquece por se curvar e bajular o poder e à custa do erário público é imoral, particularmente quando o país é pobre e necessita da solidariedade internacional e do sacrifício da maioria para sobreviver condignamente.
Termino, presumindo ser insuspeito ao falar com clareza, sem calculismos nem manobras intelectuais ou outras, numa narrativa limpa, clara e honesta, dado que a verdade pinta-se nua, e eu não alimentar nenhum rancor a cobrar, não possuir panaceia a vender e me ter sido atribuído, há anos, o estatuto de Combatente da Liberdade da Pátria, condecoração pela Presidência da República (1ª classe da Medalha de Mérito), e homenagem pela Ordem dos Médicos Nacional, pelo contributo dado antes e depois da independência, sem nenhum outro interesse que não a dignificação e valorização do nosso povo e país.
Obrigado pela paciência em me terem escutado.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2015 Arsénio Fermino de Pina
Muitos ismos estão a liquidar as esperanças num futuro melhor em Cabo Verde. Egoísmos, "interessismos",divisionismos, "ceguismos", "lobismos", "oportunismos", "vaidosismos", umbiguismos, e outros ismos nocivos ao juntamom de que a terra cabo-verdiana tanto precisa.
ResponderEliminarUma excelente abordagem de largo espectro sobre a problemática dos Ismos que é tempo de acabarem em favor de uma democracia verdadeiramente participativa.!!
ResponderEliminarO estilo do companheiro Arsenio de Pina é sempre original e virada para os cidadãos