Noite fria em Tomar, sob céu límpido e estrelado. Saio para ir abastecer o automóvel a uma bomba de gasolina. Suspensas sobre as ruas, figuras de múltiplas combinações bordam a noite com seus perfis luminosos. No ar flutuam as modulações de cânticos difundidos por altifalantes invisíveis. É o Natal à porta, anunciado em toda a sua fantasia coruscante. O movimento nas ruas é a estas horas já quase diminuto, depois do corrupio frenético durante a tarde toda. Foi um vaivém ininterrupto sobre os passeios, lojas com mais clientes do que o habitual, pessoas apressadas transportando sacos e embrulhos. Nesta altura, o poder de compra faz tréguas com a carestia, e o Natal é uma fábula com que o comum das pessoas se pactua, não fazendo caso das denúncias do consumismo desenfreado. Há quem entenda que o verdadeiro sentimento natalício é anestesiado pela banalização de gestos e palavras que nos dias de hoje se automatizam a uma escala sem precedentes com os novos recursos das tecnologias de comunicação: mails, sms, cartões de boas festas formatados pelos sistemas informáticos, etc.
Com estes pensamentos, paro frente a um sinal vermelho do semáforo, e alguém se aproxima a vender-me o almanaque Borda-d’água. Mas o sinal verde abre e arranco, no rosto do vendedor ambulante ficando a estampada a frustração. É possível que me tenha visto como um cliente certo, que as regras de trânsito lhe roubaram no último instante. Sinto remorso, ainda penso em fazer inversão, mas a manobra é impensável. O meu impulso natalício foi tolhido pelas exigências do código de estrada.
Chego à bomba de gasolina e encontro um velho companheiro das minhas já longínquas andanças por terras de Angola. Convida-me a tomar um café. Sentados já à mesa, vêm logo as lembranças de África, de dois natais passados num lugar recôndito em pleno mato, em situações hoje inimagináveis pelas gerações actuais. A páginas tantas, o meu amigo queixa-se do consumismo que assola as pessoas por esta data e aponta-me, como exemplo, o saco repleto de prendas.
─ Já sei que daqui a dois dias os meus netos já nem sequer vão olhar para isto, e serão mais uns brinquedos a juntar aos dos anos anteriores, mas que fazer? ─ disse ele.
─ Pois é, o que fazer? ─ corroborei a sua interrogação ─ se não surfarmos a onda destoamos dos outros, ficamos mal vistos, não é?
─ Claro, mas é nesta altura que sinto nostalgia dos natais da minha infância, na aldeia da Beira Baixa…
Sem querer interromper a torrente dos seus pensamentos, deixo-o prosseguir:
─ … Olhe, naquele tempo era tudo muito diferente, muito simples, hoje até dói ver tanta “estragação” em coisas de que não precisamos e servem mais para justificar a ocasião natalícia. Lembro-me bem desses tempos, eu miúdo ainda, numa época que era de dificuldades... ─ Uma breve pausa, e aguardo que ele continue.
─ … Na minha aldeia, a véspera de Natal era, em certos aspectos, um dia como outro qualquer, sem comezainas e luxos. Durante a tarde, o meu pai reunia uns bons cepos de pinheiro e arrumava-os ao pé da lareira. Explicava-me que nessa noite o fogo não se podia extinguir, porque o Menino Jesus iria acomodar-se junto à lareira. À hora do jantar, o braseiro já estava bem vivo, o que era um consolo naquelas noites invernosas. A seguir, íamos à Missa do Galo e regressávamos a casa na companhia dos meus avós e outros familiares. O meu pai reunia sempre a família mais próxima. A minha mãe punha então a mesa para a nossa ceia, pobre mas algo diferente dos outros dias. O meu avô abria uma garrafa de aguardente de medronho do seu próprio fabrico. Então, a reunião de família se animava com uma conversação viva e alegre em que toda a gente participava, contando-se histórias de outros tempos. O meu avô recordava sempre a memória de outros natais, a presença dos seus pais, a grande satisfação que os invadia na véspera natalícia. Chegava o momento que eu mais aguardava. Era quando o meu pai me dizia que ia nascer o Menino Jesus naquela noite e que ele viria numa estrela para me trazer de propósito uma prendinha. Então, aconselhava-me a deixar o meu único par de sapatos ao pé da lareira, porque dentro deles eu iria encontrar uma surpresa. ─ E o que acontecia depois? − indago, interessado em ouvir o resto de uma conversa de todo inesperada.
− Ah, vai ver. As horas iam avançando, e o fogo da lareira não parava de ser alimentado para se manter ao rubro. O seu forte crepitar denunciava a presença de uma noite especial. Lá para o fim, os temas de conversa iam rareando, o sono a aproximar-se, e o olhar de todos pregado no brasido da lareira. Dir-se-ia que repentinamente ficavam pensativos, talvez a recordar familiares ausentes ou já falecidos. Mas naqueles olhares silenciosos lia-se a gratidão pela comunhão espiritual daquela noite. Era como se o Menino Jesus fizesse o milagre de reforçar o afecto que nos unia a todos. Eu ia para a cama, não sem deixar de espreitar para o céu, na esperança de descobrir a tal estrelinha que me ia trazer o Menino Jesus. O meu sono era sobressaltado com a alegre expectativa da manhã seguinte. Mal acordava, corria para a lareira e dentro do sapato estava uma moeda de 1 escudo. Para mim isso tinha um significado desmedido. Ainda hoje recordo a singeleza daquela prenda. Mas aquela moeda, pouco dinheiro, significava mais do que o seu valor real. Era a prova real de que tinha havido uma noite diferente na nossa casa. Enfim... naqueles tempos era assim mesmo.
Então, intervim: ─ Se calhar a solução é sequestrar o Pai Natal, suspendê-lo num limbo qualquer, fora do alcance do marketing comercial, ele que é o seu símbolo mais mediático, inventado pelos americanos. É a única maneira de fugir ao consumismo desenfreado que nos desfoca o olhar sobre o essencial da vida; de fazer vista grossa e ouvidos moucos a essa agressiva publicidade que incita as pessoas a gastar até ao último centavo, e quando não o têm é a crédito.
─ E acha que resulta?
─ Não, não resulta, o que eu disse é uma metáfora, é uma brincadeira com as palavras. Porque, de facto, é difícil contrariar a dinâmica social e dos tempos, que é sempre complexa e imprevisível. Até porque, repare, o crescimento da economia depende também do consumo interno, mesmo que o seu efeito seja sazonal, como no Natal e nos meses das férias. Enfim, as coisas não são tão lineares como às vezes supomos, a economia não é como governar uma casa, tem as suas regras, as suas variáveis. Mas é pena que o espírito natalício entre na contabilidade das coisas perecíveis.
O meu amigo suspirou e disse: ─ Ah, quanto daria para regressar aos natais da minha aldeia!… seria a única forma de fugir ao atropelo dos sentidos…
─ Diz bem, a solução é regressar às nossas antigas aldeias, ─ interrompi-o ─ e mesmo quem não tenha uma pode criá-la dentro de si. Assim seria possível fugir aos clichés, à banalização dos gestos, à mistificação dos sentimentos. Sim, regressar à autenticidade cristã da noite natalícia é possível numa aldeia real ou imaginária. Longe do mundo artificial e supérfluo, perto das coisas puras e essenciais. Aquelas que perduram na memória.
E foi com estas palavras finais que me despedi do meu amigo, com votos recíprocos de Boas Festas.
Tomar, Dezembro de 2015
Adriano Miranda Lima
Amigo Adriano M. Lima
ResponderEliminarSe neste belo conto de Natal...fosse eu o seu companheiro do café:
Beira Litoral:
Lembr-me de quando era mocinho de calção; encontrar de manhã, no sapato roto, um postal ilustrado com muitos santinhos... " Natal Feliz do teu pai querido" -- Visado pela censura" S. Vicente Cabo Verde 1940 / A única prende de Natal que ,ainda, guardo com muito carinho.
Boas Festas e Muitas Felicidades
Felicito o Artur por conservar essa relíquia. "Feliz Natal, do teu pai querido", eis a expressão sublime do sentimento natalício... "do teu pai querido".
ResponderEliminarInfelizmente, este meu Natal está a ser assombrado pela trágica notícia da morte do menino de dois anos, nos Açores, às mãos do padrasto, que dele abusou sexualmente a ponto de lhe causar a morte. Por mais que me esforce não consigo afastar esta trágica e inacreditável imagem. Uma criancinha que ainda nem sabia falar para se queixar e se defender... Este meu Natal está a ser terrivelmente inquinado pela morte violenta e suja de uma flor que estava a desabrochar. Outras e muitas mais mortes semelhantes houve contudo pelo mundo fora. Mas esta entrou-nos brutalmente pela porta dentro.
Amigo
ResponderEliminarÉ caso demasiado brutal para qualquer ser com pingo de humanidade, ficar insensível...
Não há pena judicial que se enquadre neste tipo de morte!
Tal como o criança que deu à costa morta numa praia grega...
Século tragico
Lindo texto. Costumo dizer que nós éramos felizes apesar da pobreza, pois o dinheiro e o consumo não compram a felicidade. Os bens materiais são voláteis e o que é perene são os valores a felicidade a alma humana. Todo o resto é perecível.
ResponderEliminarO Adriano tem que pensar em escrever mais crónicas pois não restasm dúvidas do dom para a arte da escrita e o trabalho de escultor que faz da língua portuguêsa, esta belo e rico património comum.
Os Natais mais felizes foram aqueles (quase que) sem brinquedos mas com muito Amor.
ResponderEliminarSucedeu aqui uma tentativa de "assassinato" o Pai Natal e o jornalista criador de "Pai Natal morreu" desapareceu incontineneti, sem que a imprensa desse a noticia dele no obituàrio. Jà viram o que seria se isso fosse tomado a sério? Deixo-vos enumerar as conseqüencias.