Foi publicado recentemente um artigo no Jornal Público “Ser africano em Cabo Verde é um tabu”, que versa sobre questões de identidade e o aparente dilema de o cabo-verdiano ser africano ou não africano.
Este tipo de “elucubração mais ou menos intelectual” não é fenómeno novo.
Antes, faz parte de uma filosofia corrosiva produzida e excretada por certos liberais “mundialistas”, já a partir do início dos anos 60, do século passado. Culminado com os excessos de Maio 68, sua intenção declarada era (e é) a destruição das sociedades tradicionais de cariz ocidental ou ocidentalizado.
Para esta corrente de pensamento, nada do que existe é bom e, por isso, trata-se de desconstruir e destruir todas as estruturas tradicionais para criar uma nova sociedade, habitada por um “homem novo” que, este sim, não terá as taras dos que viveram até lá.
O presente texto vem, pois, no seguimento desta abordagem que consiste em aplicar métodos e ensinamentos da tal filosofia conspirativa na desconstrução das sociedades supra referidas para, finalmente, no nosso caso concreto, a destruição da sociedade cabo-verdiana, tal como ela existia e fora criada pelos nossos antepassados, com “enxada na mão, de sol a sol”,
Tal cabala mergulha suas raízes nos complexos africanistas que, já nos anos 60 (para falar só do que sei), torturavam a mente e o espírito frágeis dos estudantes cabo-verdianos de Lisboa, dos quais eu fazia parte. Naquela altura, a nossa ingenuidade levava-nos a pensar, baseado no nosso activo militantismo pró-independência que contrastava, a nosso ver, com a aparente passividade de muitos africanos da Guiné, Angola, etc., que éramos tão ou mais africanos do que eles.
Quem não se lembra da unanimidade que existia em torno da União Guiné-Cabo Verde que, na óptica do romantismo revolucionário da época, ao realizar-se seria a concretização de mais de que um sonho; seria uma obrigação moral em relação ao que chamávamos de Mãe-África!
Muitos, por falta de formação política, compreende-se, não se capacitaram de que tal ideia, inspirada por terceiro-mundistas (à cabeça dos quais se encontrava Amílcar Cabral) acabaria por dar uma primeira machadada na estrutura da sociedade cabo-verdiana que fora sempre vista pelos pretensos revolucionários (de que, confesso, eu fiz parte!) algo a abater para a castigar pelo crime de ser uma sociedade que fizera a síntese perfeita entre os contributos de várias culturas: africanas, europeias (portuguesas, italianas,…) e outras.
Após a revolução de 1974 em Portugal, a aplicação da referida filosofia conspirativa contra a nossa sociedade, consistiu na destruturação da família cabo-verdiana, tal como a conhecíamos.
Utilizando as tácticas leninistas de tomada do poder, orientou-se completamente a sociedade no sentido da sua desregulação, lançou-se os jovens pelas ilhas com a missão clara de desrespeitar os nossos valores, incluindo a de praticar agressões aos mais velhos que, com muito custo, tentavam conservar a sociedade herdada de seus antepassados mas que, rapidamente vencidos, se resignaram a constatar o seu inexorável desmoronamento.
Foram os mesmos jovens que, às ordens de seus mentores leninistas tomaram, de assalto, a Rádio Barlavento para a converter numa arma contra os que aspiravam à democracia e acabar com qualquer veleidade no sentido da criação de uma sociedade democrática em Cabo Verde.
Com tal assalto, a oposição cabo-verdiana ao PAIGC foi erradicada e a sociedade bombardeada ininterruptamente com a propaganda abjecta, inspirada por auto-intitulados progressistas, mas que não passavam de simples marxistas-leninistas.
Era assim aplicada à letra o que tinha sido decidido, não só em Moscovo, mas também, em certos centros “mundialistas” ocidentais.
Não obstante uma estóica resistência de alguns, continuam a aparecer, em Cabo Verde e na diáspora, regularmente tentativas de prossecução dos intentos maléficos, no sentido da destruição da sociedade cabo-verdiana.
Após o falhanço da famigerada união Guiné-Cabo Verde, pedra angular da política cabralista, os seguidores, desta, lançaram um ataque cerrado à diversidade da língua crioula das ilhas, com a criação de uma pretensa “Lingu materno” que, a ser aplicada acabaria por desnaturar ou destruir todas as versões do crioulo falado no arquipélago, consumando, assim, a derradeira etapa de desconstrução da sociedade cabo-verdiana. Expiado do pecado original que representa a cabo-verdianidade, o cabo-verdiano estaria, finalmente, resgatado do pecado da sua herança multicultural não idêntica à do continente africano.
Integrado nas repetidas tentativas de destruição da sociedade cabo-verdiana aparece, agora, o artigo referido no início deste texto, que pretende, pelo menos num aspecto, dizer-nos o óbvio: Cabo Verde está em África, por isso, somos africanos.
Não levantaria nenhuma objecção se o objectivo era de ficar por aí e não introduzir uma dose doentia de racismo, intolerância e fundamentalismo africano.
Um determinado indivíduo afirma, no referido artigo, que só fala crioulo pois que detesta aquilo que ele chama de língua dos colonizadores. Lembraria que todos falámos crioulo em casa, na rua e não nos era imposto falar português. No meu tempo de estudante, discutíamos matemática em crioulo mas procurávamos, por orientação de nossos pais conhecer, o melhor possível, o português, porque sabiam que se quiséssemos ser médicos, engenheiros, etc. era indispensável o domínio e o uso da língua portuguesa.
O que constrange algumas boas almas ditas revolucionárias é que, durante o período anterior à chegada dos ditos ‘combatentes de libertação’ pertencentes ao partido, muito africanista e pouco “cabo-verdianista” de Amílcar Cabral, toda (ou quase toda!) a administração de Cabo Verde era assegurada por cabo-verdianos, saídos do Seminário de S. Nicolau e do Liceu Gil Eanes, onde grande parte dos professores era gente da Terra.
Eu lembro-me de que, naquela altura, qualquer indivíduo que chegasse a Cabo Verde, teria que se integrar na sociedade cabo-verdiana, isto é, respeitar “a nossa maneira de ser” que era a única que imperava na nossa Terra”. Impúnhamos os nossos valores que nenhum poder colonial contrariava. Todos ouviam mornas e coladeiras: não nos era imposto ouvir fados (de que gosto, aliás!). Muitos outros exemplos da nossa “independência” em relação ao regime colonial poderiam ser dados.
Alguns estão embriagados por um mórbido racismo que, para ser mais apresentável, chamam de “racismo anti-racista” (esta última figura foi criada por Jean-Paul Sartre) e, nessa base, gostariam de “purificar” os espíritos e promover a africanização total dos cabo-verdianos. A esses, dizemos que serão culpados pela diluição da cabo-verdianidade (um fenómeno sui generis) e “para a redução e talvez mesmo exterminação, a mais ou menos longo prazo, do típico e castiço povo cabo-verdiano, destruindo assim uma cultura ímpar no mundo, cultura que deu belos frutos na literatura, na música, nas artes e que se situa, com independência e honra, entre a África e a Europa”*.
Para manter este bem precioso que é a cabo-verdianidade haverá que pensar:
1. Em não se aglutinar na CEDEAO, com a qual só devemos ter relações de puro interesse comercial.
2. Procurar manter (embora nem todos sejamos religiosos!) o carácter cristão das nossas ilhas, não “dormindo na forma” em relação ao espírito de conquista do islão que já converteu uma boa parte da África Negra.
3. Acabar com o disparate que consiste em encontrar no produto cultural em que se tornou o cabo-verdiano algo de imperfeito por não nos sentirmos nem europeus nem africanos, embora reconheçamos os “apports” de uns e de outros.
4. Afirmar a decisão de lutar, com todas as forças, para a preservação dos diferentes crioulos, lançando ao mesmo tempo um anátema sobre o famigerado Alupec (pretensa Lingu materno).
5. Exigir o ensino, desde a instrução primária, da verdadeira História de Cabo Verde enaltecendo seus poetas, seus técnicos, seus marinheiros, seus administradores, etc., ao mesmo tempo que se expurga das suas inverdades, a que é ensinada actualmente.
6. Na mesma ordem de ideias, no ensino poder-se-ia utilizar como livros de leitura os dos nossos novelistas, poetas e outros escritores,…
Isto tomaria a cara de uma verdadeira resistência cultural, sem a qual Cabo Verde estará, irremediavelmente, condenado a desaparecer como nação com suas características próprias…
* Citação extraída de um discurso do Engenheiro Sérgio Duarte Fonseca, em 1981.
Manuel Delgado, 07-02-2016
Um artigo de Manuel Delgado um dos fundadores da UCID publicado no Arrozcatum, mais uma réplica ao artigo do Jornal Público “Ser africano em Cabo Verde é um tabu”.
ResponderEliminarAviso aos leitores "cardíacos", que se fixaram em verdades absolutas e Pensamentos Únicos, que artigo é duríssimo portanto não apropriado para eles, pois deita por terra muitos tabus, ou seja diz alto muita coisa que já se ouviu baixinho décadas a fio. Arrasa meio mundo em cabo Verde e as nossas concepções saídas do pós 25 de Abril, na linha do pensamento do pais fundadores da UCID rebeldes e tidos por subversivos.
Manuel Delgado que, infelizmente, pouco tem aparecido (não digo contribuido) ultimamente neste foro, aparece-nos agora com um artigo valiosissimo pelo qual lhe felicito e lhe tiro o meu chapéu "haut et bas".
ResponderEliminarValoroso como é, espero que nos visite com mais assiduidade porque bem precisamos de cabo-verdianos como é este companheiro ucidista, ipso facto, cabo-verdiano e democrata.
Braças, mantenhas e força na canela.
Uma pequena precisão! Os meus agradecimentos aos que lembram o meu passado de membro da UCID mas, no presente artigo, não me expremi em nome da UCID, embora tenha tido a honra de participar na fundação deste partido, no ano de 1978. O meu artigo é o de um simples cidadão cabo-verdiano, preocupado com a sorte do povo cabo-verdiano no seu todo, independentemente das cores partidárias que demasiadas vezes, por mesquinhos interesses pessoais, se esbotam e até mudam de aparência, mostrando a inconsistência humana...
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