A elite cabo-verdiana é na sua maior parte desavergonhada e destituída de ética política e social, pois limita-se a vegetar vivendo de esquemas e privilégios que a dependência da ajuda externa (ainda) garante, alienando-se do papel de liderança cívica que lhe devia competir, e desta forma incapaz de ser o esteio das transformações sociais e económicas que se exigem a um país que não pode continuar a olhar de soslaio para os desafios da modernidade.
Cabo Verde, o estado actual da desilusão
Em meados da 1ª década de 2000, dois casos que abordarei mais à frente e que se prendem com causas da cidadania (as questões do ‘Património’ e o Pacote Alupec) levaram-me, conjuntamente com um grupo de amigos, que já debatiam através das redes sociais estas problemáticas, a sair da hibernação, abandonando a reserva a que nos tínhamos anteriormente remetido, ou pela percepção de inexistência de motivos que exigissem uma mobilização, ou porque tínhamos ficado indiferentes ou acomodados com a situação. Convém realçar, como referi no anterior artigo, que esta é uma situação comum a que se acantonaram muitos quadros, intelectuais e cidadãos diversos, residentes e na diáspora, como que fazendo passar sub-repticiamente esta mensagem: não se meter em nada que diga respeito a política, de modo a não ter chatices com o ‘pessoal’ e beneficiar o máximo do sistema. É como segredar à sociedade civil que ela não deve ser interventiva, mas sim servil, pois qualquer tomada de posição sobre determinados problemas, pode ser vista como oposição, um ataque ao sistema ou filiação a um partido divergente do do poder. Isto é de certo modo paradoxal e contraditório, na medida em que, em Cabo Verde, acorda-se, almoça-se e janta-se política, ao ponto de, fora da política, já não haver vida neste arquipélago, antes da morabeza. Mas aqui estou a referir-me à política no seu sentido rasteiro e deletério e não à política que enobrece o homem enquanto ser social.
A sociedade cabo-verdiana, devorada pela partidarização acéfala que se assemelha mais ao clubismo desportivo, fica assim fragmentada e atomizada, sem uma noção clara da fronteira entre a disputa estéril e a militância nas causas colectivas. Com o fim do partido único, caiu-se noutro extremo ainda mais pernicioso: a arregimentação estrutural da sociedade cabo-verdiana, ela que era alheia à política até 1974, por ser então vedada ao comum dos mortais e reservada a ‘doutores’. De repente, entrou-se para a política em pequeno mas sem preparação de base, ainda por cima com o mau exemplo de políticos incompetentes e impreparados, ficando no ar uma deplorável impressão de amadorismo, suficiente para promover a desmobilização do entusiasmo inicial. Neste cenário, não se discutem as questões de fundo da sociedade, privilegiam-se os assuntos acessórios dos partidos, iludindo nas mentes impreparadas o sentido das prioridades nacionais. Discute-se simplesmente a forma em vez das ideias, o sexo dos anjos dos partidos, a cor do clube partidário a que cada um pertence em função dos seus interesses pessoais ou impulsos momentâneos.
Herdou-se em 1974/75 uma revolução do vazio, em que ao invés de se discutirem as problemáticas atinentes à sustentabilidade da independência deste pobre e frágil arquipélago, rico em rochas e calhaus, mas pobre em recursos naturais, preferiu-se discutir o sexo dos anjos do comunismo das estepes soviéticas ou chinesas, como que querendo saber quem tinha mais razão na dialéctica entre Trotsky, Lenine ou Mao. Resultado, nenhum deles tinha razão e esvaíram-se 40 anos, e com isso muitos comboios passaram aos nossos olhos inquietos e temerosos. A herança é terrível, pois nunca se tentou criar a unidade e consensos nacionais em torno de questões fundamentais centradas na busca de soluções realistas para a viabilidade económica do país. E quem não lia/lê pelas cartilhas da situação era/é escorraçado. Os modelos políticos e económicos mais absurdos tornaram-se assim moda no país, levando a escolher opções que acabaram por desembocar no atoleiro actual, com ruptura da situação socioeconómica e ausência de perspectiva e rumo claro para o futuro. Estamos hoje perante uma sociedade alienada e atrofiada politicamente, subjugada pela política, pela má política. E o resultado é termos hoje em Cabo Verde um estado jacobino, centralista, sobredimensionado, formatado para países continentais e ricos, qual carga disforme pesando sobre o país esquelético e sem recursos. O estado que antes da Independência tinha uma dimensão mínima (governo colonial= Governador, Secretário-Geral e staff mínimo), cabendo praticamente num apartamento, é hoje um monstro tentacular repleto de estruturas parasitas, instituições fantasmas, má cópia de instituições de países mais avançados, nomeadamente Portugal, e uma legião de funcionários ou burocratas inúteis. Ora, tudo isto atrofia e aniquila angustiosamente a própria sociedade.
Por outro lado, os partidos cabo-verdianos estão totalmente desadaptados ao mundo do século XXI, despiram-se das ideologias de que eram adeptos, o marxismo-leninismo ou a social-democracia, já não têm ideologias específicas ou representativas das grandes correntes ideológicas, nem mensagem própria, não se apercebendo de que até os seus nomes já estão inadequados e desfasados do tempo e do espaço da sua primitiva formulação identitária. Um deles continua a ser o da independência nacional após ter comemorado o quadragésimo aniversário deste evento, ao passo que o outro nem se considera partido, mas sim movimento com aspiração a partido, estando dividido em várias tendências e capelinhas, no limite federado por um líder com condições de ganhar as próximas disputas eleitorais, por desgaste corrosivo do partido ainda no poder.
A elite cabo-verdiana é na sua maior parte desavergonhada e destituída de ética política e social, pois limita-se a vegetar vivendo de esquemas e privilégios que a dependência da ajuda externa (ainda) garante, alienando-se do papel de liderança cívica que lhe devia competir, e desta forma incapaz de ser o esteio das transformações sociais e económicas que se exigem a um país que não pode continuar a olhar de soslaio para os desafios da modernidade. Assim, o bem-estar das populações e o seu sonho legítimo num futuro melhor reclamam a mudança do sistema que governa este pobre arquipélago, a sua urgente reforma e renovação de alto a baixo e em todas as direcções. Este vai ser o grande desafio da sociedade civil, que vai ter de se mobilizar e ‘empoderar-se’ se quiser apanhar o comboio do futuro e não ficar na estação a vê-lo passar com respiração tristemente contida. As forças políticas propõem modelos de governação e soluções para os problemas, mas elas nada são sem a militância activa dos cidadãos e a sua atitude permanentemente crítica e vigilante. É hora de sair do conformismo e vir a terreiro forçar a mudança de paradigma tendente à resolução dos graves problemas de Cabo Verde.
(in Cabo Verde Direto)
José Fortes Lopes | jose.flopes@netcabo.pt
[escrito com a antiga grafia da língua portuguesa]
Texto lúcido e oportuno. Estas ilhas precisam com urgência inadiável de uma mudança de paradigma. Vimos assistindo a verdadeira regressão social para não dizer civilizacional mesmo, em quase todos os aspectos da vida social e, sobretudo, no fazer e no atender do Estado, dos serviços, face ao cidadão.
ResponderEliminarVejam-se as prioridades, apenas um pequeno exemplo: a Polícia anunciou com pompa e circunstância a montagem de uma mega "operação estratégica" para o período da campanha legislativa a decorrer (entenda-se: orientar o trânsito e fechar ruas das urbes, lá onde há comícios partidários)Não anuncia uma operação estratégica para apanhar os bandidos, assaltantes que infestam a cidade capital e que colocam em risco a vida do cidadão e dos visitantes forasteiros.
Voltando ao texto, José Fortes Lopes, tem toda a razão na parte relativa a inadequação e total desadaptação aos tempos actuais dos Partidos políticos concorrentes.
Abraços
ResponderEliminarJosé Fortes Lopes, é um grande cidadão que vem defendendo heroicamente os interesses da terra que ajudou nos princípios da mudança, e mesmo depois, mas que teve de dobrar o cabo com esperança de política melhor para quem se viu oprimido.
Desde que conheci o jovem notei o seu amor à terra para quem dá um contributo leal e sem esperar qualquer torna.
Obrigado, José, tens toda a minha admiração.
Val obrigado pelos comentários extensivos à Ondina. Já fazemos todos parte desta família ArrozCatum e Praia de Bote onde tertuliamo samigavelmente e na desportiva. abraço José
ResponderEliminarNa verdade, o José é um exemplo de militância pertinaz e incansável a favor da nossa terra, que tanto precisa do contributo das ideias de todos os seus filhos. O José toca num ponto essencial: a necessidade de uma reconfiguração do espectro partidário. Isto porque neste momento é difícil distinguir o que verdadeiramente separa os principais partidos em termos ideológicos, se é que isso importa mais do que a seriedade e o empenho na resolução dos problemas do país. Tanto é assim que não se pode associar o José a qualquer dos partidos que disputam o poder. Ele olha é para as causas nacionais e para as propostas e garantidas dadas pelos partidos para pugnarem em prol das mesmas. Neste momento, a expectativa geral é que o partido que vença as próximas eleições consiga levar por diante a tarefa de reformar o país de modo a torná-lo mais capaz de enfrentar os difíceis desafios da actualidade. De facto, o centro da nossa pugna é contribuir para colocar a democracia mais próxima das pessoas, o que só é possível com a descentralização do poder e a criação de um modelo de regionalização. Mas para isso os partidos têm de ser impulsionados pela cidadania, porque a inércia é inimiga do progresso.
ResponderEliminarO Estado caboverdeano precisa de ser repensado e "flitado" para desembaraçar-se da pesada carga de gongons que traz às costas que vem assombrando o desenvolvimento do país.
ResponderEliminarMatrixx