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domingo, 13 de março de 2016

[9002] - TEMAS DO MOMENTO...

SOBRE O TEMA DA EUTANÁSIA

Este tema tem sido badalado nos últimos dias, interpelando o sentido da nossa humanidade e a nossa espiritualidade.
No ano passado, no mês de Maio, desloquei-me a S. Vicente/Cabo Verde, minha ilha natal, para estar presente numa altura em que, a minha mãe, aos 92 anos, sofrendo de doença grave pouco tempo antes detectada (cancro no pâncreas), estava acamada e a aguardar o desfecho final. Depois de ter estado internada no hospital, os médicos decidiram que ela devia regressar a casa porque o único tratamento ali ministrado podia ser prosseguido em casa: medicamentação para aliviar as dores, cuidados paliativos, como hoje se diz.
Num estado de semi-inconsciência, ela ainda me reconheceu quando cheguei, mas não tardaria a perder a noção do que a rodeava. Pelas informações que fui recebendo enquanto estive ausente, o súbito agravamento do seu estado convencera-me de que tinha de viajar sem demora, sob pena de não chegar a tempo do funeral, dado que, com a sua avançada idade, a morte podia ocorrer a todo o momento. No entanto, assim não aconteceu. Ela ainda resistiu 21 dias desde a minha chegada, o que me proporcionou o conforto espiritual de lhe fazer uma companhia que, embora em circunstância dolorosa, tinha para mim um significado muito especial: no momento derradeiro, estar presente e desejar que a minha mãe permanecesse viva o mais que pudesse.
Mas aí é que podem emergir sentimentos contraditórios. Sentir o enlevo da presença de um ente querido e ao mesmo tempo assistir angustiosamente ao seu sofrimento, sabendo-o uma tortura de que só a morte é capaz de libertar. Interrogar-se também sobre qual será o desejo que o doente acalenta lá no fundo da sua semi-inconsciência quando, como era o caso da minha progenitora, não era possível qualquer comunicação verbal ou minimamente sinalizada.
O que eu senti, eu, Adriano, e toda a família, é que seríamos de todo incapazes de autorizar qualquer forma de eutanásia, mesmo que a mãe, estando consciente, o desejasse. No entanto, no que a mim toca, se um dia vier a estar em semelhante situação, desejarei, pelo contrário, que os meus familiares autorizem o termo do sofrimento. Mas o que desejarei para mim não o projecto para outros.
Eis uma questão verdadeiramente controversa e difícil de ser avaliada sob uma perspectiva jurídica sem que a nossa consciência ético-moral e os fundamentos da nossa espiritualidade não reclamem primazia.
No entanto, em Portugal, no dealbar do século passado, a eutanásia era praticada nas remotas aldeias serranas. Escreve o Aquilino Ribeiro na sua obra “Geografia Sentimental” que essa prática era usual naquele tempo. Quando um idoso, em fim de vida, se apresentava doente, em grande sofrimento, sem esperança, a família chamava o “abafador”, um homem que se prestava ao acto de abreviar o sofrimento de outrem. E Aquilino descreve a cena: na sala, o mulherio aguarda em silêncio; entra o “abafador” e, sem palavra, dirige-se ao quarto do paciente que, à vista, começa a gemer; o outro, às cavalitas, tapa-lhe o rosto com a almofada e pressiona até que a imobilidade sucede ao estertor. Consumada a tarefa e pago, o “abafador” sai e o mulherio rompe em choro lastimoso: “ai coitadinho, ai coitadinho…”.
Mais de um século depois, interrogamo-nos sobre o que verdadeiramente evoluiu positivamente em termos civilizacionais. Os recursos da ciência médica para aliviar o sofrimento do doente terminal? Certamente que sim. Os fundamentos da nossa consciência ético-moral em relação aos tempos transactos? Provavelmente não. 

Tomar, 13 de Março de 2012
Adriano Miranda Lima

7 comentários:

  1. Com a Eutanásia estamos confrontados com uma problemática antiga muito discutida nos tempos recentes. As opiniões divergentes levam-nos num caminho cheio de escombros e não se sabe se vencerá a legislação vigente ou os que desejam ter uma Morte na Dignidade.
    Pessoalmente, pensando que se trata de um desfecho sem dor e sem sofrimento, estarei do lado da oposição à lei para que tudo se faça conforme a vontade de quem sofre, com a assistência de profissionais.

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    1. Sobre o assunto, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, futuro Presidente da Repùblica, disse que respeitarà a vontade popular e que se limitarà somente a ser àrbitro.

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    2. Nos abraços, ora enviados queria dizer e corrijo: "cheios" de dúvidas, pois elas (as dúvidas) são imensas...
      Ondina

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    3. Ondina: Ninguém de bom senso, nem mesmo os que no meu tempo só tiveram a Quarta Classe de Instrução Primária, vai levar em conta a distracção que comeu um "S". Talvez o seu pedido de rectificação sirva para que se tenha mais atenção a uma letra tão rica que é uma das maltratadas como o "C". presentemente na nossa terra.
      Com o meu obrigado por isso e também pelo seu empenho (em outros lugares) pela defesa do(s) nosso(s) crioulo(s) seculare(s).

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  2. É uma questão que pertence à categoria das consideradas altamente "fracturantes." Muito complexa, mexe com aquilo que acreditamos ser nossos valores cristãos, humanitários, afectivos, solidários...eu sei lá! Mas há situações em que nos interrogamos se a eutanásia não seria uma forma de parar um grande sofrimento.
    Abraços, cheio de dúvidas e mais dúvidas.













































































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  3. Creio que esta é uma daquelas situações em que a maior parte das pessoas só conseguirá ter uma opinião quando com ela se defrontar, com relação a alguém que lhe seja muito querido...

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    1. Foi o meu caso, Zito, e em momento algum se pensou noutro procedimento que não fosse assistir e acompanhar a pessoa até que o último suspiro acontecesse de forma natural, a assinalar o fim da vida. Ficou-nos a compensação de saber (ou supor) que ela não sentia dores. O genro, que é médico, garantiu-o.

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