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segunda-feira, 14 de março de 2016

[9009] - A ARTE DO POSSÍVEL...

O Ulisses Correia e Silva, sob uma aparência de comedimento, moderação e até humildade, transmite a impressão de possuir traquejo político e um carácter resoluto. Parece mais um corredor de fundo do que um velocista. Alguém que, imbuído de forte espírito de servir, é pertinaz e tem consciência dos trilhos que deve percorrer para chegar à meta...

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A propósito de um artigo da Rosário da Luz intitulado "MISS GOVERNAÇÃO”, publicado em Abril de 2013, o José Fortes Lopes comentava que a articulista “acerta quase sempre”. Então, concordando com o meu amigo e companheiro de reflexão, acrescentei que ela efectivamente acerta bem na "mouche" no momento em que  sobem ao palco do debate televisivo os candidatos à próxima governação do país. Isto porque ontem eu assistira pelo youtube ao debate entre os presidentes dos dois principais partidos, no caso em apreço, e tomando de empréstimo a metáfora da Rosário da Luz: uma “Miss Governação” e um “Mister Governação”, respectivamente, Janira Hopffer Almada e Ulisses Correia e Silva.

A Rosário da Luz diz, a dado passo, no seu discurso: “tendemos a conceber a liderança como concebemos o carisma: como uma habilidade pessoal, um dom individual dissociado do contexto que o produz. Mas as visões ou vontades de indivíduos carismáticos só se convertem em lideranças se encontrarem ressonância num colectivo. A competência social para produzir e absorver as lideranças necessárias ao momento é um capital indispensável na gestão das conjunturas desfavoráveis. Lideranças não se destinam a promover nem as mais nobres causas individuais; destinam-se a articular clara e produtivamente os anseios do colectivo”.  

Aí está! Articular os atributos individuais com os anseios colectivos! Ora, pelo que me foi dado ver e ouvir no aludido debate, nenhum daqueles políticos parece reunir um excepcional perfil de liderança, ao mesmo tempo que, convenhamos, não há sinais de crepitar na sociedade civil a chama viva dos anseios colectivos. Interroga-se, assim, se a resolução dos problemas do país dependerá tanto da imprescindibilidade de uma figura carismática enquanto não se verificar o fortalecimento da consciência colectiva e o engajamento dos cidadãos em torno da coisa pública. Visto o problema deste ângulo, parece adiada sine die a auspiciosa articulação das duas circunstâncias, ou então limitada a uma latitude menos ambiciosa. Bem, também não há razão para pessimismos exagerados, até porque os grandes líderes carismáticos não se encontram ao virar da esquina, e, por outro lado, raramente transitam pela História sem deixar um rasto de controvérsia, ao passo que os feitos relevantes de uma nação têm quase sempre a marca do povo anónimo e o desígnio da eternidade.

Que ideia me deixaram os dois candidatos que se confrontaram no palco?

Reparei que a Janira Almada parece fazer da agressividade verbal um instrumento da sua estratégia discursiva. A linguagem fluente e escorreita resvala facilmente para a jactância e até para certa petulância na forma de encarar o adversário. Mas fica-se com a impressão de que é mais um ademane para disfarçar a sua incipiente experiência política ou para reforçar a sua carga anímica. Deixa, no entanto, uma imagem de pessoa aguerrida e dotada para a arte política.

O Ulisses Correia e Silva, sob uma aparência de comedimento, moderação e até humildade, transmite a impressão de possuir traquejo político e um carácter resoluto. Parece mais um corredor de fundo do que um velocista. Alguém que, imbuído de forte espírito de servir, é pertinaz e tem consciência dos trilhos que deve percorrer para chegar à meta.

Perguntar-se-á o que será mais útil ao país: algo que ilumina copiosamente mas dura pouco ou algo menos vistoso de luz mas perdurando no tempo? Por outras palavras, uma liderança de espectáculo cénico ou uma liderança mais próxima da nossa idiossincrasia e por isso resistente como as acácias do nosso chão?

Seja como for, diria que ambos os protagonistas são capazes de gerar alguma empatia, embora em direcção a públicos diferentes. Os que preferem uma natureza afoita e intempestiva, preferirão certamente o estilo da Janira Hopffer Almada (a juventude); os que se inclinam mais para a ponderação e a constância do procedimento, talvez optem pelo Ulisses Correia e Silva (as gerações mais velhas). Mas o pendor político-partidário é outro factor diferenciador no tempo e no espaço da dialéctica eleitoral, restando saber qual o seu peso relativo e determinante na opção do cidadão, ou seja, em que medida contará mais do que a atracção por cada um dos tipos de liderança.

Isto apenas no que se refere à postura exterior e às características psicológicas de cada uma das figuras.

Quanto ao contudo concreto das propostas políticas discutidas, é possível que o espectador tenha ficado desiludido ou talvez nem sequer se surpreenda com a ausência de uma clara distinção entre um e outro programa. E será caso para admirar, quando o pano de fundo da situação do país parece não deixar margem para grandes exercícios de doutrina política? O tema dos TACV esteve aí a demonstrá-lo. A diferença poderá residir mais na qualidade pessoal e técnica do futuro elenco governativo e na experiência e seriedade dos seus membros, do que no cariz ideológico dos programas. Podia acrescentar também “coragem política para tomar decisões críticas”, mas dei-me conta de que o tema da Reforma do Estado/Regionalização nem sequer pediu licença para entrar no debate. Se ele “cunquiu” à porta por acção telepática dos “regionalistas” da Diáspora e de S. Vicente, ninguém a abriu. Com a Janira Hopffer, compreende-se, pois o seu partido nunca esteve para aí virado e nem quer ouvir falar de tal “gogom”. Com o Ulisses Correia e Silva, já não é minimamente compreensível, dado que andou a prometer governos regionais a algumas ilhas. Ora, prometer governos regionais subentende a intenção de uma reforma importantíssima do aparelho do Estado, direi mesmo crucial e tão indispensável como inadiável, o que tinha, necessariamente, de merecer lugar central no debate televisivo, a menos que já ninguém leve a sério a teatrologia eleitoralista: nem os políticos, nem a comunicação social, nem a sociedade civil. Poderia falar também da ausência do tema da Justiça, se o objectivo deste artigo não estivesse mais circunscrito à análise dos perfis de liderança dos candidatos a primeiro-ministro. Mas a omissão da Justiça, uma instituição que anda num estado verdadeiramente lastimoso, brada aos céus e diz muito sobre a pequenez do sentido de estado dos dois protagonistas.

Eu é que não me surpreendo com a exclusão da Reforma do Estado/Regionalização no espírito dos dois candidatos, porque desde sempre venho afirmando que ninguém, da actual classe política, ousará meter um pé nessa estrada quanto mais empreender a caminhada. Tanto o PAICV como o MpD estão na mesma trincheira em defesa do Estado hipertrofiado, burocratizado e centralizado na Praia, porque sabem que desmontar o monstro conflitua com interesses de toda a ordem que ali convergiram sob a tutela de uma nomenclatura partidária que elegeu uma ilha e uma cidade como a única razão de ser do país. As promessas eleitorais do MpD só virão provar uma vez mais que delas está cheio o vazadouro da democracia.

Será caso para perguntar quem venceu então esse debate? Eu é que não sei e nem quero entrar no terreno da partidocracia. O que sei é que quem o perdeu foram os defensores da Regionalização, que têm toda a razão para se sentirem completamente decepcionados. No entanto, o Ulisses Correia e Silva sabe que tem uma maneira fácil e habilidosa de cumprir a sua anunciada promessa de “abertura à Regionalização”. Fabrica um diploma, submete-o à discussão no Parlamento e ele é chumbado pela maioria exigível pelas circunstâncias. Nada mais perfeito e sem exigir grande rasgo de imaginação. Ficará contudo com o mérito de ter feito o que ninguém ousara até ao momento e livra-se do ónus de um desafio ingrato e espinhoso, isso depois de já ter provavelmente amealhado uma expressiva votação naquelas ilhas que mais vêm reclamando uma descentralização do poder. De resto, o tema da Regionalização tem dado a azo às mais incríveis artes de dissimulação, encenação e cinismo político.

Bem disse Bismarck que a política é a arte do possível. Pois, é verdade, mas pensamos que uma Reforma do Estado em Cabo Verde é “possível” e é um imperativo nacional. E não pode continuar a depender de jogos de espelho. (in Cabo Verde Direto)

Tomar, 12 de Março de 2016

Adriano Miranda Lima | limadri64@gmail.com

[escrito com a anterior ortografia da língua portuguesa]

2 comentários:

  1. Um grande texto com uma análise bastante profunda da problemática CV. Como desfazer o actual nó górdio? Eu acho que os dois candidatos não debateram a Regionalização pois o debate já estava todo combinado: não pisar em terrenos movediços, apesar de tudo a Regionalização é perigoso do ponto de vista político.

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  2. Ora aí está uma verdadeira radiografia, atenta, lúcida que observou e "viu" para além do frente-a-frente (em palco) dos dois candidatos. Não houve de facto apresentação de programa da governação que se seguirá, exceptuando a questão dos impostos, apenas aflorada. Tal como escreveu Adriano, o debate poderia ter sido mais "substantivo" se se tivesse analisado, discutido o ponto de vista de cada um sobre a grande questão da reforma do Estado e da regionalização. Mas pelos vistos, não é esta a finalidade dos debates de campanha e os Jornalistas também não aproveitam as boas ocasiões, para colocarem questões realmente pertinentes para o País.

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