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quarta-feira, 13 de abril de 2016

[9117] - ...ENTRE AS BRUMAS DA MEMÓRIA...


Na recente campanha eleitoral ganhei grande respeito e admiração pela candidata Janira Hopffer Almada. Jovem e mulher que é, brilhar como o fez neste nosso universo político onde os machos pontificam, é obra! Chapeau!


Com 40 anos de independência, Cabo Verde já vai com duas Repúblicas, duas bandeiras e dois hinos nacionais. Só não muda o Povo!

E como a História é feita de ciclos, a Segunda República entrou agora na sua terceira alternância com um “empate técnico”, por assim dizer, entre os dois partidos governantes: três mandatos para cada um, o terceiro a iniciar agora. Nos dois precedentes ciclos houve coisas boas e coisas más, umas para celebrar e outras para esquecer. Como tudo na vida. Todos os ciclos históricos têm a sua parte sombria, que ninguém deseja reavivar em tempo algum, antes sirva de lição para nunca mais se repetir.

Comida-de-caminho

Em Santo Antão, minha ilha de gentes sensatas e dignas, quando uma pessoa partia em viagem por ermos campos e ribeiras, levava comida-de-caminho. Com muito sol, chapéu na cabeça! Com essas precauções protegia a moleira e não caía de “dublidede” antes de chegar ao seu destino.

Dito isto, longos e tortuosos são também os caminhos que levam ao Poder, e quem parte sem comida-de-caminho pode ficar… pelo caminho! Sabedoria e ponderação são a “comida de caminho” de um aspirante ao Poder, não menos importantes que uma farta conta bancária, uma equipa motivada e uma logística consequente.

Por exemplo, insistir por demais na evocação do passado para ganhar votos pode pregar partidas a quem assim procede. Vá lá que uma competição política também é feita de comparações, mas pode ser perigoso usar a memória colectiva como arma de arremesso. Com os eleitores atentos e maduros que este país tem, todo o cuidado é pouco!

A “tragédia” dos anos 90!

Na recente campanha eleitoral ganhei grande respeito e admiração pela candidata Janira Hopffer Almada. Jovem e mulher que é, brilhar como o fez neste nosso universo político onde os machos pontificam, é obra! Chapeau!

Mas se a minha opinião contasse, eu teria dito à candidata Janira que agitar o passado como espantalho era uma falta de tacto político que podia surtir efeitos indesejáveis, sendo de acautelar o risco de um efeito boomerang. Não por convicções partidárias individuais, mas tão-somente porque a História é feita de ciclos que se sucedem ou se alternam, e evocá-los para fins políticos pode colocá-los em rota de colisão.

Vem isto a propósito da alegada “tragédia” que teria vivido o povo caboverdiano na década de 90, no dizer do partido ainda em funções e da sua valorosa candidata. Pior, só mesmo a guerra civil ou a peste negra! Aos “sobreviventes” foi lembrada a responsabilidade de, com o seu voto, erradicar para todo o sempre quaisquer tentações de reavivar a “hecatombe”, ou seja mais ou menos isto: - “ou nós ou o caos”! Nada mais maniqueísta…

Mas a evocação da “tenebrosa década de 90” não era, em si, um convite para revisitar o passado? Se tal não era a intenção, assim aconteceu! E os eleitores, olhando para trás, viram que não era bem assim! Os mais jovens, chamados a votar pela primeira vez, não gostaram de ser aliciados com um discurso de meter medo. Repetido até à exaustão, o apelo contra um déjà-vu passou a ser ouvido como um anacronismo pretensiosamente messianista. Ao invés de convencer, acabou por indispor muito boa gente que não gostou de ver distorcida até à caricatura um passado recente que ainda não se dissipara da sua mente. Outros viram nessa diabolização compulsiva um atestado de amnésia ou um desrespeito pela memória colectiva! O discurso foi ficando ranço, e finalmente, nas urnas, não passou.

Aconselhar os conselheiros

As nossas campanhas eleitorais custam os olhos da cara, é só ver os comícios que mais parecem espectáculos de rock-star! Pelos valores mirabolantes que se diz serem pagos aos experts na matéria, no mínimo devem os candidatos ser bem assessorados! Mas primeiro é preciso fazer um briefing a esses doutores em comunicação, estrangeiros para não variar, com duvidosos conhecimentos ca da terra, para não pensarem que isto aqui é o bosque da Bela Adormecida ou que nós-outros somos destituídos de memória!

No caso vertente, os conselheiros teriam justificado as fortunas arrecadadas dizendo a quem precisava que martelar tanto no passado podia ser uma arma de dois gumes. Ninguém pensou que a “viagem” aos anos 90 podia ir mais longe? Ninguém pensou que essa estratégia iria fatalmente despertar no subconscientemente das pessoas a lembrança do regime autoritário de 1975-1990? Ninguém deseja regressar à “década de noventa”, ora essa!, mas duvido que alguém tenha saudades do colonialismo ou dos quinze anos de partido único. A História pode até repetir-se, mas não anda para trás! Infelizmente para alguns saudosistas, ainda que o não digam expressamente: já ouvi de amigos meus que o grande mal de Cabo Verde é… a democracia! Amarga democracia, mais amarga uma colher de óleo de fígado de bacalhau!

A História repete-se, mas não recua

Com efeito, trazer para o debate político as piores reminiscências da “década de 90”, foi o mesmo que invocar outros fantasmas do passado, outras lembranças menos gratas que eram (também) para esquecer: salvo má memória ou má-fé, quem não deu consigo a pensar no regime autoproclamado de “força luz e guia”, por exclusão daqueles que ousavam pensar por sipróprios? Quem já havia esquecido, de repente lembrou-se das prisões arbitrárias, das “autorizações de saída”, da lei do boato (que “imunizava” dirigentes e governantes contra eventuais críticas), das mordaças de uma autocensura de sobrevivência (que até hoje não foi completamente debelada porque o Estado é ainda hoje um mega-empregador e qualquer partido que (o) sustente tem tendência a dar as cartas em detrimento da iniciativa privada).

O excessivo relevo dado aos erros cometidos na “década de 90” (e não foram poucos) fez emergir outras recordações desses anos de mudança: o desabrochar da democracia, a dissolução da polícia política e do tribunal militar que julgava os “crimes contra a segurança do Estado”; a nova Constituição de 1992 que selou a ruptura definitiva com o sistema de partido-pensamento únicos. E vai daí, os emigrantes lembraram-se que em 1992 passaram a ter direito de voto e à dupla nacionalidade, isenções alfandegárias em caso de regresso definitivo. E mais e mais…

Recordar a “década de noventa” foi também lembrar o fim de uma economia centralizada, com plafonds de importação, frequentes rupturas de stock e filas intermináveis para comprar um frango ou um quilo de cebola. Foi recordar o advento de uma nova era de oportunidades (pese embora as iniquidades de um capitalismo “salve-se quem puder” com tendência a fazer escola no mundo hodierno, que o Autor deste artigo abomina). E mais: a “inserção dinâmica de Cabo Verde na economia mundial”, os bancos comerciais e de negócios, a nossa moeda indexada ao Euro na base de uma paridade fixa; a cobertura telefónica nacional que passou de 9.095 linhas em 1991 para 19 mil em 1995, ou seja mais do que o dobro em quatro anos; as comunicações inter-ilhas e com o mundo por satélite e cabos submarinos de fibra óptica; a internet, a teleconferência e o telefone celular (em 1997); a adesão, em 1999, ao projecto de cabos internacionais de fibra óptica Atlantis II...

E o regime que se seguiu deu continuidade à obra a partir de 2001; em quinze anos foi ainda mais longe e saiu-se muito bem. Isto é como uma bicicleta, minha gente, não tem marcha-atrás! Ou pedalamos ou ficamos estatelados no chão!

Mas tudo é obra do povo das ilhas, mestre do seu destino, motor do seu desenvolvimento. Honra aos partidos que receberam o mandato das urnas para gerir os seus destinos e… o SEU dinheiro! - (in Cabo Verde Direto)

Mantenhas da terra-longe, 12 de abril 2016

David Leite | davleite@hotmail.com

2 comentários:

  1. Grande artigo. Gostei da parte final ""Mas tudo é obra do povo das ilhas, mestre do seu destino, motor do seu desenvolvimento."" Com efeito David Leite tudo o que aconteceu, coisas boas e menos boas, deve-se ao povo destas ilhas que mandatou,oralmente (1975) ou por votos (a partir de 1991), que se governasse em seu nome. Nem sempre as coisas resultaram em bem, mas continuamos vivos, aqueles que Deus quis, para testemunhar!!

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  2. De facto, provocam náuseas as estratégias de manipulação de que fazem uso alguns políticos para atingirem os seus fins. Despudoradamente, tentam limpar certa memória e moldá-la à sua conveniência, passando atestado de de débil mental ao eleitor. Desta vez, não surtiu efeito e oxalá que os aprendizes ou candidatos a político tirem as devidas ilações.
    Este artigo, muito bem elaborado e fundamentado, deixa-nos "comida-de-caminho" para as andanças da reflexão que continuamente nos deve empenhar se quisermos ser parte activa nas decisões sobre as nossas vidas.

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