José Almada Dias |
Após quase 3 meses de uma ausência não programada, as crónicas da Identidade Crioula regressaram. Entretanto, neste ínterim, muita coisa aconteceu no país berço da crioulidade, que elegeu novos governantes.
Houve quem tenha dado muita ênfase à vitória do MpD no Fogo e mesmo em S. Antão. Foram vitórias importantes, mas, para mim, o resultado em S. Vicente é o que me merece mais atenção.
O eleitorado desta ilha urbana sempre foi unanimemente considerado pelos politólogos um barómetro das tendências eleitorais no país. Carlos Veiga, quando era primeiro-ministro, chegou a dizer várias vezes na comunicação social: “quando São Vicente fala, o país escuta”.
Senão vejamos: desde sempre, a ilha recusou-se a depositar o poder nas mesmas mãos, seguindo a sabedoria popular de que não se deve colocar todos os ovos no mesmo cesto (para quem não sabe, S. Vicente é hoje a ilha que abastece de ovos o país, passando de importadora para exportadora) – a ilha sempre elegeu um presidente da Câmara com cor política diferente do poder central; foi aqui que candidaturas verdadeiramente independentes chegaram e mantiveram-se no poder; a ilha teve a primeira assembleia municipal com cinco cores políticas diferentes, com quatro partidos e um grupo independente; elegeu a primeira mulher para dirigir um município, uma cidadã fundadora e presidente da primeira Associação de Mulheres Empresárias e Profissionais do país. A nível de movimentos cívicos, do ambiente, de defesa dos consumidores, a lista de inovações desta ilha é extensa e vem desde os primórdios do seu povoamento.
Mas, mesmo tendo um eleitorado esclarecido, S. Vicente deixou-se enganar durante longos 15 anos. Votou entusiasticamente na mudança em 2001, alinhada com o país, como já tinha acontecido 10 anos antes. De seguida, deixou-se embalar pelos cantos de sereia de refinarias, de um retorno anfíbio aos mares através do Cluster do Mar (leia-se ressuscitar um efémero passado de grandeza via porto); enquanto se anunciava repetidas vezes um gigantesco porto de águas profundas no Porto Grande, eram investidos milhões de dólares no Porto da Praia vindos de um MCA de cujo pacote a ilha não viu um dólar!
Enquanto isso, fábricas que tinham sido trazidas da longínqua Ásia para o parque industrial do Lazareto foram hostilizadas a ponto de fecharem portas, lançando no desemprego centenas de mães de família, cujas respectivas famílias ficaram sem sustento e sem Previdência Social, numa política de esquerda única no mundo: um Governo a fechar fábricas e a aumentar, deliberadamente, o desemprego. Para quem não se recorda, basta o exemplo da Cape Verde Clothing Company, na altura, o maior empregador privado do país.
Em 15 anos, a ilha que se orgulhava de ter um porto que chegou a ser o pulmão por onde o país todo respirava, que já tinha sido o Eldorado do emprego, viu-se a si mesma transformada na ilha com maior taxa de desemprego do país (uma façanha que ficará na História de Cabo Verde). Ao mesmo tempo que se propagava o discurso de que o desenvolvimento do país passava pela sua infra-estruturação, para justificar uma insensata política de betão e alcatrão, a ilha mais infra-estruturada do país mergulhava no desespero e na frustração: mais e mais desemprego, cada vez menos investimento público do “governo do amor à terra”, em cujos orçamentos a ilha não era considerada. Não tive tempo, mas fica para outra oportunidade trazer as percentagens do orçamento de investimento anual que couberam a São Vicente durante os últimos 15 anos.
Quando os são-vicentinos acordaram e foram buscar a sua conhecida capacidade de reivindicação, foram acusados de “lamúrias” e de serem pouco empreendedores! Imagine-se, logo a ilha onde os cabo-verdianos de todas as ilhas tinham tido o primeiro contacto com o emprego formal, com a indústria e os serviços internacionais, incluindo o turismo, visto que foi a primeira ilha a ter turismo, através do centenário turismo de cruzeiros; logo a ilha onde os cabo-verdianos vindos das ilhas se libertaram das amarras do trabalho agrícola nos campos e aprenderam a ter “cada um sê negoce”. Se dúvidas houvesse ainda de que se tratava de uma estratégia deliberada, a perversidade destas insinuações colocou a nu as reais intenções.
Existem duas formas de manutenção no poder: pela positiva, ou pela negativa. Pela positiva, temos o brilhante exemplo dos crioulos africanos das Seychelles, que não me canso de mencionar, cujos governantes estão no poder há mais de 4 décadas, tendo passado por um sistema de partido único (igual ao que tivemos), e depois mantendo-se no poder em plena democracia. Os crioulos seychellois não têm razões nem motivação para mudar de governantes: pudera!, o país cresce a bom ritmo, não existe desemprego, não há pobres desde 1997, são os africanos mais ricos, com índices de riqueza e desenvolvimento melhores do que muitos países europeus.
Existe, pelo contrário, uma forma perversa de manutenção no poder: manter as populações na pobreza, na ignorância e, sobretudo, na dependência do Estado. Não é preciso fazer uma licenciatura em Ciência Política para saber isso. E essa estratégia, que sempre deu e continua a dar frutos por esse mundo fora (a África e a América Latina que o digam), foi brilhantemente executada aqui neste país. Que interessam 4 anos de pobreza extrema, quando o Estado dá “chupetas” nas vésperas das eleições?! Quando se inauguram pontes, estradas, barragens e casas sociais no último ano, renovando as esperanças do povo?! Quando se mexe despudorada mas habilmente nos traumas da consciência colectiva de uma população sofrida e abalada por décadas de falta de chuva?! Ou quando se engana deliberadamente as gentes de S. Vicente prometendo que o Porto Grande vais encher-se de barcos novamente, apenas porque se criou uma entidade administrativa para ressuscitar um cluster do mar que realmente existiu no passado, da forma que os clusters devem existir, ou seja, sem a intervenção do Estado, baseados na livre iniciativa, dando, na altura, origem a esta cidade do Mindelo.
Mas engana-se quem pensa que o boicote a São Vicente foi de índole bairrista. Antes fosse! Como tive a oportunidade de escrever no ano passado na crónica “República das bananas”, quem assim pensa comete um grosseiro erro de casting, que só favorece os perversos estrategas por detrás do esquema. A questão tem origens ideológicas e visava tão-somente calar a sociedade civil tradicionalmente mais contestatária do país, uma estratégia coerente com a política de preservação do poder através da dependência da população do Estado.
“Gote de Manê Jom” já não tinha gemada para se alimentar, e o sonho de reviver o verso “pa tude quês rua de Morada era um data d’estranger” morreu com o deliberado boicote aos maiores projectos turísticos do país, que tinham escolhido a ilha de Cesária Évora para se instalar – quem não se lembra do Cesária Resort e de mais uma dezena de resorts com marcas internacionais, que deveriam criar milhares e milhares de postos de trabalho na ilha? Quem acredita que tantos projectos, promovidos por empresários vindos de várias partes do mundo, do Dubai aos EUA, passando por vários países europeus, não aconteceram apenas por culpa dos respectivos promotores?!
Como resultado de 15 anos de votar nos mesmos governantes e políticas, S. Vicente ganhou um semi-aeroporto internacional cheio de limitações e uma estrada que liga o Calhau à Baía das Gatas, e que não era prioridade para a ilha.
A ilha percebeu, então, que tinha sido enganada, duplamente enganada, em 2006 e em 2011. E preparou a sua altiva resposta. Uma vez que a vingança se serve fria, esperou tranquilamente pelo dia 20 de Março, no mês do teatro e das mulheres. E, qual peça vicentina, levantou-se e foi votar, arrastando o país.
O PAICV foi severamente castigado pelas gentes de S. Vicente, que fizeram passar o partido no Governo directamente da 1ª para a 3ª divisão (leia-se último lugar)! E a humilhação só não foi maior, porque ainda pesa na nossa democracia o facto de a extrema pobreza se deixar comprar. Tivesse a UCID os meios de que dispõem os dois maiores partidos, e a coisa teria sido bem mais feia para o lado da estrela negra.
Mas São Vicente também não deu a maioria absoluta ao MpD, e deixou claro que o futuro pode não ser o bipartidarismo.
Este povo já não é o mesmo que se deixou iludir com promessas de AMOR e cujos sonhos se alimentavam de morangos da terra. Trata-se, a partir de agora, de um sério aviso à navegação para todos os políticos e dirigentes deste país. Quem não corresponder, pode não passar de um só mandato e ainda sair pela porta dos fundos.
Mas nem tudo é responsabilidade do poder central. E os cínicos até dirão que outras ilhas ainda estão pior, a perder população.
O pior é a descrença instalada e o conformismo na ilha – instituições que outrora brilharam como as vozes das forças vivas da sociedade a nível nacional, como a Associação Comercial de Barlavento, hoje Câmara de Comércio, são pálidas herdeiras das suas antecessoras, chegando-se ao ponto de as eleições para os seus corpos dirigentes nem sequer suscitarem disputa, “obrigando” quem lá está a continuar, numa organização que devia ser um órgão de poder nacional.
É verdade que a ilha sofreu nos últimos 40 anos uma “drenagem” de cérebros nunca antes vista, enfraquecendo as suas elites e privando-a dos seus jovens mais brilhantes.
Mas mesmo assim S. Vicente continua a não ser apenas o barómetro político do país, é, como sempre foi, o farol que indica o futuro da era moderna, apesar dos boicotes e de todas as dificuldades que enfrenta.
Nesse sentido, convém que a nova liderança do país, que tem o meu apoio incondicional entenda isso: São Vicente não passou um cheque em branco à nova maioria, e pode ser que mais uma vez o país ouça o que São Vicente disse, por isso todo o cuidado é pouco. O ilusionismo e a venda de banha da cobra resultarão cada vez menos.
Esperemos que Cabo Verde retome os caminhos do desenvolvimento, desta vez em liberdade plena, ou seja, pela positiva.
Dedico esta crónica à memória de Baltazar Lopes da Silva, um dos pais fundadores desta que é a primeira nação crioula do planeta, cuja identidade ele compreendeu como ninguém. No passado dia 23 de Abril, completou-se o 109º aniversário deste que é o cabo-verdiano mais ilustre que estas ilhas pariram.
Numa crónica sobre a ilha de São Vicente, não posso não partilhar a minha exaltação por mais um aniversário de Sua Majestade, a Rainha Isabel II de Inglaterra, que completou a bonita idade de 90 anos no passado dia 21 de Abril. S. Vicente deveria, por razões históricas, estar a festejar e juntar as vozes ao coro mundial: GOD SAVE THE QUEEN!
Prova de que São Vicente precisa de acordar, a cidade do Mindelo continua sem geminar-se com as suas irmãs de Newcastle e Cardiff, de onde provinha o carvão que alimentou o desenvolvimento desta cidade atlântica, cujos entrepostos jogaram um papel decisivo na navegação atlântica e na globalização mundial. O Mindelo devia ser Património Mundial, e Sua Majestade iria certamente prestar o seu apoio. Para quando uma visita dos nossos eleitos municipais e forças vivas da ilha a terras de Sua Majestade? Será que temos que esperar pela autorização do Governo central? Convenhamos…
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 752 de 27 de Abril de 2016.
Nem sempre concordo com o José Manuel Almada Dias pelo seu optimismo militante, quando os tempos não eram nem são para tanta alegria, mas este artigo está muito bom. Felicito-lhe!!
ResponderEliminarGostei desta "Prova de que São Vicente precisa de acordar, a cidade do Mindelo continua sem geminar-se com as suas irmãs de Newcastle e Cardiff, de onde provinha o carvão que alimentou o desenvolvimento desta cidade atlântica, cujos entrepostos jogaram um papel decisivo na navegação atlântica e na globalização mundial. O Mindelo devia ser Património Mundial, e Sua Majestade iria certamente prestar o seu apoio. Para quando uma visita dos nossos eleitos municipais e forças vivas da ilha a terras de Sua Majestade? Será que temos que esperar pela autorização do Governo central? Convenhamos…"
Concordo com o José Manuel Almada Dias
é inacreditábel como S. Vicente nunca soube aproveitar a diplomacia para restabelecer uma nova relação (cultural desportiva etc) com a Inglaterra, esta ilha que ainda respira muito este país.
Isto dá uma ideia do estado de decadência em que caiu a ilha. Mais baixo do que está não há chão.!!1