Há diversas provas de que a nossa civilização está a chegar ao fim. Uma delas consiste na perda de referências que durante séculos permitiram organizar o pensamento.
Isso verifica-se na pintura, por exemplo. Quando era figurativa, a pintura tinha um referencial – que era a realidade. Era possível dizer se um quadro estava ‘bem’ ou ‘mal’ pintado, confrontando-o com a realidade que pretendia retratar. Claro que isso não bastava. Tinha de haver algo mais, um estilo, um toque de génio que diferenciasse um pintor dos outros. Mas esse ‘referencial da realidade’ perdeu-se. Hoje temos quadros todos pretos ou todos brancos. Não é possível saber se estão bem ou mal pintados.
E o mesmo pode dizer-se para a escultura, para a literatura, para o cinema ou para a música.
A melodia – ou seja, uma linha de continuidade que o ouvinte seguia e ia acompanhando – desapareceu da maior parte das músicas contemporâneas. Muitas delas são conjuntos de sons dispersos, aparentemente sem ligação entre si.
E na escrita verifica-se o mesmo. Um romance contava uma história – que podia ser a história de uma pessoa, de uma família ou de um grande amor. Mas muitos dos romances que hoje se escrevem não têm história. As frases são agrupamentos de palavras que podem fazer ou não sentido. Também aqui o ‘referencial da realidade’ desapareceu. Não se pode dizer se a história é boa ou má, verosímil ou inverosímil, porque deixou de haver história.
E com o cinema passa-se a mesmíssima coisa. O chamado ‘enredo’ perdeu-se. O filme negro de João César Monteiro é o exemplo extremo de não-cinema.
Mas não só nas artes se perderam as referências. Em muitas outras áreas se nota essa ausência de nexo, ou de sentido, ou de lógica. Por exemplo, nos cabelos cuidadosamente despenteados; na fralda da camisa por fora das calças; nos sapatos a que se retiram os atacadores. Tudo sinais que pretendem transmitir às pessoas um ar negligé, desimportado, de desprezo em relação às convenções – mas que no fundo representam exatamente o contrário: um seguidismo cego em relação à moda…
Neste tema da falta de sentido das coisas – ou de uma cultura do absurdo – o exemplo mais ridículo são as calças rotas. As calças compradas na loja já rotas constituem o exemplo máximo de uma civilização que chegou ao fim da linha e já não consegue inventar mais nada. Então põe-se a rasgar deliberadamente a roupa nova. É o nonsense no seu máximo esplendor!
Tudo começou com os ‘jeans lavados’.
Quando os bluejeans apareceram, tinham naturalmente a cor da ganga azul. E assim viveram uns bons anos. Mas a dada altura alguém se lembrou de dar aos jeans novos um ar usado – e aí apareceram nas lojas os ‘jeans lavados’. Os jeans novos, com ar de acabadinhos de sair da fábrica, tornaram-se um sinal de parolice, de pessoa pouco ‘vivida’. E os jovens queriam parecer ‘vividos’...
Mas, como todas as modas, os jeans lavados banalizaram-se – obrigando os criadores a puxarem pela cabeça. Mas não tiveram grande imaginação. Dos ‘jeans lavados’ passaram aos ‘jeans puídos’, ou seja, gastos em certas zonas para parecerem muito usados. E a machadada final foram os rasgões. Primeiro nos joelhos, mas depois em toda a parte. Hoje vêem-se jeans a que faltam praticamente as coxas – substituídas por gigantescos buracões! As pessoas que as vestem tornam-se cómicas. Dão imensa vontade de rir, parecendo palhaços pobres!
Entretanto, para dar algum sentido útil a uma moda sem sentido nenhum, arrisco-me a fazer uma sugestão. Sugiro às empresas de confeção têxtil que façam convénios com ONGs atuando em países do terceiro mundo para enviarem para lá jeans novos – recebendo em troca jeans velhos e usados. Que têm mais valor do que os que se vendem nas lojas, porque foram envelhecidos pelo uso e não de modo artificial. E que podem inclusive ter andado na guerra, exibindo rasgões feitos em combate ou mesmo buracos de balas.
Que tal?
Os consumidores ocidentais poderiam satisfazer a sua ânsia de frivolidade – e as populações desses países pobres teriam o prazer de usar calças novas.
António José Saraiva
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Adriano M. Lima
Absolutamente verdade o que deixou escrito.
ResponderEliminarSó faltou dizer que em relação à ganga desbotada em alguns pontos, acresce o aspecto de sujo, de grande desmazêlo.
Gôstos modernos, com falta de gôsto.
Cumprimentos, e bom Domingo.
Dilita
Isso nunca havia de suceder na minha adolescência onde éramos vigiados, sobretudo pelas eventuais conquistas. Tudo tinha de ser impecàvel. Mas, mudam os tempos e mudam os costumes nem sempre agradavelmente. Respeito a vida de cada um mas reparo com um sorriso irônico a evolução, seja ela de que tipo.
ResponderEliminarNunca esqueço a exclamação de Cicero invectivando as perversidades dos homens e os costumes dissolutos da sua época: - "O tempora! o mores !"
Isto é apenas a espuma do sintoma de perda das referências no mundo ocidental. Procura-se disfarçar com expedientes prosaicos sintomas bem mais graves sobre o nosso afastamento dos valores basilares.
ResponderEliminarQualquer dias os fatos vão ficar todos rotos
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