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sexta-feira, 1 de julho de 2016

[9398] - A COPA CRIOULA DAS AMÉRICAS...

José Almada Dias
A aproximarmo-nos da "silly season", ou seja, do Verão, tempo das férias, de descontração e lazer, apetece ler tudo menos assuntos muito sérios. Por alguma razão os anglo-saxónicos apelidaram esta época do ano de silly season. Compreende-se que depois de um longo inverno, as populações de terras frias queiram gozar na plenitude os poucos dias de sol e de algo parecido com calor de que dispõem anualmente.
A pergunta que me ocorre é: e nos países em que há sol e calor o ano todo? Vivem numa permanente e longa silly season?
Já várias vezes me ocorreu acalentar a teoria de que o calor é inimigo do desenvolvimento. Basta olhar para o mapa-mundo actual e imaginá-lo sem ar condicionado….
Mas no Egito antigo não havia frigoríficos nem ar condicionado e mesmo assim aí floresceu uma riquíssima cultura, sobretudo se atentarmos aos padrões da época. E imagine-se que nesse tempo já se bebia cerveja, que aliás terá sido fermentada pela primeira vez na Mesopotâmia, há cerca de 10.000 anos, primeiro pelos Sumérios e depois pelos Babilónios.
Apreciando uma “geladinha”, como dizem os nossos irmãos mais novos brasileiros, fico a imaginar como seria beber uma cerveja no tempo de Ramsés II ou de Tutancamon. Terá sido a inspiração dessa “caliente” cerveja que permitiu aos egípcios edificar maravilhas como as pirâmides e a esfinge de Gizé, o tempo de Abu-Simbel, etc, etc?! Já imaginaram uma cerveja a deslizar pelo lindo e esguio e por isso mesmo famoso através dos tempos, pescoço de uma Nefertiti? Nesse tempo as mulheres já bebiam? Terá Cleópatra degustado uma cerveja enquanto testava os seus famosos venenos nos seus escravos?
Mas regressando a uma “geladinha” actual, dou por mim a fazer zapping entre os jogos da Copa América e do Campeonato Europeu de Futebol, num fim-de-semana cheio de opções desportivas, desde o US Open de golfe, ao campeonato do mundo de voleibol e várias finais de torneios de ténis em relva, com os jogadores todos vestidos de branco a lembrar-me o meu pai e o meu avô, praticantes dessa linda modalidade aprendida directamente com os ingleses que viviam aqui no Mindelo. É muito desporto televisivo para um homem só, ainda por cima com a incumbência de escrever uma crónica para o jornal.
Alinhando então pelo diapasão da "silly season", resolvi enveredar por uma crónica sobre esses dois grandes eventos desportivos (leia-se comerciais) que movimentam milhões de fans (e de dólares e euros) nestes dias e em simultâneo: a Copa América e o Campeonato Europeu de futebol, o desporto mais popular do planeta.
Deste lado oriental do Atlântico o campeonato da Velha Europa, todo organizado, com o seu futebol mecânico, científico, cheio de fórmulas tácticas e muito bem pago.
Do lado de lá do Atlântico, em pleno Novo Mundo, joga-se a Copa América, com um futebol menos disciplinado e organizado, mais à base do improviso, com muito menos dinheiro, mas muito mais criativo e bonito de se ver, com um colorido futebol praticado pelos crioulos que a globalização criou.
Sim, porque a América é o continente crioulo por excelência, a terra prometida da expansão iniciada pelos europeus e em que milhões de africanos foram arrastados, num processo que terá sido o início da hoje tão debatida globalização.
Uma expansão que passou por Cabo Verde nos seus momentos mais marcantes. Na Cidade Velha, na ilha de Santiago, no início do tráfico de escravos para as Américas e numa segunda fase pelo Porto Grande do Mindelo, na ilha de São Vicente, quando a colonização efectiva dos países da hoje chamada África subsariana pelos europeus se deu e a grande corrida migratória de pessoas para a América latina aconteceu.
Mas voltemos a 2016 e aos eventos futebolísticos. Por uma questão de hábito, induzido em parte pelas limitações dos media, habituamo-nos mais a ver os jogos europeus e a seguir os campeonatos da velha Europa. 
Mas sem dúvida que a criatividade, a espontaneidade e a beleza do futebol ainda moram no lado de lá do Atlântico. Por alguma razão os futebolistas mais criativos ainda vêm dessa região, das terras ainda pobres e onde os miúdos jogam na rua, alguns descalços. Por isso mesmo jogam um futebol mais autêntico, mais apaixonado. 
Dir-me-ão que o melhor jogador do mundo é Cristiano Ronaldo, nado na ilha da Madeira, portanto um europeu. Essa afirmação tem muito que se lhe diga, para quem conhece a história da ilha da Madeira, que chegou a ser o maior produtor mundial de açúcar. Ora quem produzia esse açúcar a partir das plantações de cana-de-açúcar eram sobretudo escravos africanos levados para essa ilha ainda antes do povoamento de Cabo Verde. Escravos que nunca mais saíram de lá e que se misturaram na população maioritariamente europeia que povoou a ilha nos séculos seguintes. 
Já tive a oportunidade de falar com madeirenses cultos que sabem disso e que admitem a sua mais que provável ascendência africana.
Não tivesse a produção de açúcar a partir da cana-de-açúcar mudado para as Américas e a ilha da Madeira poderia ser muito mais mestiça e colorida do que é e hoje estariam eles a reclamar serem o primeiro povo crioulo do mundo pós-Descobrimentos (e não nós, os cabo-verdianos).
A juntar a esses factos históricos (estrategicamente esquecidos), existe a novela de que Cristiano Ronaldo tem uma avó ou bisavó cabo-verdiana, algo que muita gente jura a pés juntos ter ouvido uma irmã dele confirmar num programa televisivo. 
Mas voltando novamente ao futebol, e deixando de lado a História (que não nos larga), tem sido um deleite ver evoluir os crioulos da Copa América, uns mais mestiços do que outros, uns mais clarinhos como os argentinos (a imitar os europeus), outros mais escurinhos como os haitianos (a imitar os africanos) e outros mais misturados e coloridos como os jamaicanos (a imitar os cabo-verdianos), mas todos igualmente crioulos e com histórias parecidas.
Há uns anos na Inglaterra, a equipa de futebol do meu filho mais novo foi participar num torneio de futebol de verão, com dezenas de equipas de várias cidades da Inglaterra profunda. A contrastar com o tempo cinzento e chuvoso, todas as equipas eram coloridas, com miúdos de todas as cores, raças e credos, refletindo a cosmopolita Inglaterra que resultou do maior império da era moderna.
Havia contudo uma equipa diferente, exclusivamente de filhos de emigrantes das Caraíbas, acompanhados pelos pais. Quando os viu, o meu filho, na inocência dos seus 10 anos, virou-se para mim e exclamou: “olha pai, são iguais a nós!” 
A verdade sempre na boca das crianças. De facto, tanto os rapazes, como os respectivos pais, vindos da Jamaica, Barbados e outras ilhas caribenhas, e todos muito bons de bola, poderiam ser de qualquer ilha de Cabo Verde. 
Aproveitei para explicar ao meu filho que eram crioulos como nós, vindos de umas ilhas do outro lado do atlântico, que falavam línguas crioulas como a nossa, com a diferença que a nossa tem base lexical portuguesa e as deles inglesa e francesa, que tocam e cantam músicas parecidas com as nossas, comem pratos semelhantes, etc, etc.
Enquanto escrevo estas linhas, os povos crioulos das Américas continuam a disputar a sua Copa de futebol. Nas bancadas a alegria é contagiante, colorida e barulhenta, bonita de se ver.
E quando se chegam aos ritmos das batucadas que suportam as claques, aí então estou no meu mundo, seja a batucada brasileira, colombiana ou haitiana! E deixo-me levar numa viagem embalada por músicas crioulas como a salsa e o merengue, devidamente acompanhadas pela escrita crioula de um Gabriel Garcia Márquez ou de um Pablo Neruda.
Cabo Verde tem tido um inexplicável sucesso internacional em várias modalidades desportivas, isso se levarmos em conta a nossa reduzida população, a falta de meios e de organização. Será que a mistura de raças ajuda? Não faço a mínima ideia, mas existe um ditado que diz que a mistura apura!
Tenho amigos de infância que vivem nas ilhas dos Açores e cujos filhos são exímios desportistas (porque será?), e que têm representado as ilhas onde vivem nos Jogos das Ilhas da Europa. Já foram jogar às ilhas caribenhas de Guadalupe e da Martinica, arquipélagos crioulos que optaram por não se tornarem independentes, apesar da longínqua distância que os separa da Europa. 
Cabo Verde, como primeira nação crioula do mundo, devia organizar os Jogos Crioulos, como forma de trazer cá representantes das nações e povos crioulos do mundo, de Malaka ao Alaska. 
Seria interessante trazê-los a conhecer a Cidade Velha e o Mindelo, cidades que foram criadas pelo processo de crioulização do mundo e no qual tiveram um papel de relevo. 
Não andamos à procura de eventos para diversificar e qualificar o nosso turismo? 
A nossa História dá-nos pano para muitas mangas…  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 760 de 22 de Junho de 2016.

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