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domingo, 24 de julho de 2016

[9489] - TURISMO...COM SUBSTÂNCIA!

José Almada Dias
Não há turismo de qualidade sem o envolvimento da História e da Cultura.
No passado dia 2 de Junho, decorreu nesta cidade do Mindelo, nas instalações do Centro Nacional de Artesanato, um evento denominado Seminário Intercalar do projecto de pesquisa História, Memória, Urbanismo e Arquitectura em Mindelo: diálogos coloniais e pós-coloniais, organizado pelo Grupo Nacional de Trabalho (GNT-CV). O tema do seminário era “Património e História”.
A começar, uma autêntica aula de História ministrada por António Leão Correia e Silva sobre a história do Porto Grande e sobre o modo como o invulgar percurso desta cidade-ilha moldou o carácter das gentes de todas as ilhas que nela vieram sofrer a transformação de camponeses para operários, trabalhando nas empresas carvoeiras inglesas, num processo sociologicamente inovador que conduziu ao exemplo mais expressivo de população assalariada do país.
Ainda no dizer do historiador, foram as empresas inglesas que tiraram do papel o sonho dos liberais a partir de 1850, fundando de facto a cidade do Mindelo. Um exemplo citado foi o da empresa inglesa Millers & Corys, que terá sido um dos maiores promotores imobiliários da cidade nos seus primórdios, construindo habitação social para os seus trabalhadores. Um exemplo que me catapultou por momentos para a minha infância, visto que o meu avô e o meu pai trabalharam ambos nessa empresa, que abandonou São Vicente no ano de 1977. Ainda hoje, se visitarmos o bairro de Dji de Sal, está lá a prova viva destas experiências de habitação social feitas por outras empresas inglesas. Aqui abro um parêntesis para dar um salto à ilha da Boa Vista e pensar que nem isso conseguimos exigir às empresas hoteleiras que se instalaram recentemente nessa ilha (se conhecêssemos a nossa história, talvez tivéssemos exigido em pleno século XXI o que já tínhamos vivenciado quase dois séculos antes, evitando termos hoje turismo com bairros de barracas numa ilha que poderia ser um tesouro turístico, um El Dorado do turismo de luxo).
Foi curioso ficar a saber que a intenção do poder colonial sempre foi fazer da ilha de São Vicente uma ilha diferente das outras, nas diversas tentativas de povoamento da mesma, que, segundo o historiador, sempre foram autênticas utopias.
Uma dessas utopias era povoar a ilha com açorianos para ter uma cidade de gente branca, em contraponto com as restantes ilhas (sem desprimor pelos nossos irmãos açorianos, ainda bem que tal não aconteceu dessa forma, senão não teríamos esta bonita miscelânea nesta cidade fruto da mistura das misturas crioulas cabo-verdianas).
Houve de tudo nas tentativas de povoamento da ilha, inclusive manipulação de informação sobre os terrenos férteis e abundância de água existentes, jogadas subversivas para evitar a possibilidade de os americanos aqui estabelecerem uma base de pesca da baleia, ou seja, autênticas novelas históricas que estão por contar e que, certamente, farão o deleite de qualquer cidadão curioso e dos visitantes e turistas.
Uma pequena cidade com uma curta mas riquíssima história, que conta com a primeira greve do arquipélago, quando os trabalhadores do Porto Grande se rebelaram contra as poderosas companhias inglesas, paralisando o porto.
Também aqui aconteceram os primeiros episódios de alternância política democrática, já nesse tempo também envoltos em acusações de fraudes e de conluio com as empresas britânicas.
“Esta gente é a mais feliz do arquipélago, porque aqui não passarão fome”, uma afirmação feita por um administrador colonial a propósito dos habitantes da ilha de São Vicente.
Realmente, é importante conhecermos a história para podermos perceber a realidade e as diferentes idiossincrasias das populações de um país.
São Vicente é, como qualquer outro lugar, fruto da sua própria história. É o próprio Correia e Silva que afirmou a este propósito: “São Vicente tem fome de futuro, de inovação, de ser diferente do resto das ilhas”. Afirmações fortes feitas por quem sabe, e devidamente enquadradas pelo estudo minucioso da História e uma correcta interpretação dos factos históricos e de como os mesmos moldam as populações, não fosse o nosso historiador um sociólogo de formação.
Correia e Silva ainda referiu que existia na época uma verdadeira indústria de postais, para servir o turismo, confirmando as minhas afirmações já feitas neste espaço e noutros fóruns de que São Vicente foi a primeira ilha a conhecer o turismo, com os primeiros hotéis a serem construídos nesta cidade para albergar turistas, viajantes, aventureiros e homens de negócios, para além do centenário turismo de cruzeiros. Mais uma vertente importante, as primeiras experiências empresariais ditadas por uma autêntica economia de mercado internacional, que permitiu aos cabo-verdianos terem contacto directo com o mundo moderno, tirando partido das oportunidades de negócio existentes na época.
A esse propósito, não faltaram referências aos fortes intercâmbios culturais que esta cidade-porto vivenciou desde os seus primórdios, com o historiador a referir a presença frequente de bandas de música de barcos ingleses, brasileiros e argentinos no coreto da Praça Dom Luís. Por aqui se percebe a influência musical internacional que sofreram alguns dos maiores trovadores e músicos nacionais, como B. Leza, Luís Rendall, Luís Morais, Ti Gói, Frank Cavaquinho, Manuel d’Novas e tantos outros.
Não é de se estranhar, portanto, que B. Leza tenha começado a compor sambas poucos anos depois do primeiro samba ter sido gravado no Rio de Janeiro, e que o meio-tom brasileiro tenha entrado na morna moldando, definitivamente, o nosso género musical mais representativo, e que a coladeira tenha nascido sob a forte influência de ritmos latino-americanos que desfilaram neste porto.
O desporto também foi referenciado, uma herança importante e que pode ser devidamente associada à história e ao turismo de luxo ligado ao desporto, como veremos na segunda parte desta crónica.
Deu-me especial gozo ouvir Correia e Silva fazer um paralelismo entre a Cidade Velha e o Mindelo, no que concerne ao papel estratégico que essas duas cidades cabo-verdianas tiveram no comércio transatlântico e na movimentação de pessoas neste nosso oceano, algo que eu tinha aflorado na crónica anterior.
Na próxima crónica, abordaremos a importância do turismo urbano, a sua ligação à história, à cultura e à preservação do património imaterial e material, com algumas propostas para as nossas cidades.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 763 de 13 de Julho de 2016.

terça, 19 julho 2016 06:00

1 comentário:

  1. Este artigo diz tudo mas chamo atenção para o comentário do brasileiro César Palmieri sobre o mesmo. Com efeito, este diz que o turismo de massa, o que normalmente demanda as praias e gera mais receitas, pouco ou nada se interessa pela cultura e pela história dos países de destino.

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