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quarta-feira, 5 de outubro de 2016

[9750] - UMA VITORIA SEM GLORIA...


Eleições em Cabo Verde: Vitória da Abstenção e Fragilização da Democracia?

Ocorreu no Domingo a Eleição do Presidente da República de Cabo Verde, considerada pelo eleito uma eleição histórica pois obteve 74% dos votos. Todavia, ele não deveria embandeirar em arco pois o que é mais histórica é a percentagem da abstenção, nunca vista em Cabo Verde, de 63.4%, ou seja, quase 2/3 dos eleitores não se deslocaram às urnas. Fazendo as contas por alto o actual presidente foi eleito por cerca de 30% dos eleitores! Se os eleitores que se abstiveram tivessem votado no "outsider", o candidato anti-sistema Joaquim Monteiro, este teria feito um plebiscito com 70% dos votos, o que não deixa de ser um enorme paradoxo.
Portanto, em vez de se festejar, toda a gente deveria estar amargurada com este "score".
Entretanto, várias leituras podem ser feitas destes resultados. 
Uma vez que não havia um candidato declarado do partido da oposição, o PAICV, os eleitores que podiam votar por este não compareceram, pura e simplesmente às urnas...  Não valia a pena deslocarem-se às urnas pois de nada valia cruzar o ferro com a ex-oposição, que agora tem todos os poderes em Cabo Verde. 
Uma outra leitura possível é a dos anti-sistema. Os eleitores não se sentem representados pelo actual sistema democrático e o do poder pelo que o seu voto é, simplesmente, inútil... Nem mesmo o candidato anti-sistema beneficiou desta desfeita ao regime. Por outro lado, põe-se em causa a legitimidade de um Presidente eleito com 30% dos votos representativos da população, o que em regime democrático terá que se considerar sobremaneira fragilizante.
A questão que todos têm colocado é a de como é possível fazer uma série de eleições (legislativas, autárquicas, presidenciais) espaçadas por escassos meses num país tão pobre, cujo orçamento do Estado é alimentado pela União Europeia e outros países amigos... Não se poderia encontrar um sistema mais económico que poupasse nas despesas em eleições e que reduzisse as funções do Estado ao seu mínimo? A resposta parece ser, obviamente, um rotundo SIM!
Em suma, um regime Presidencial associado a um sistema de regionalização e a uma reforma do sistema autárquico. Teríamos, assim, um poder Presidencial , Poderes Regionais e um Senado reduzido. Aboliam-se ou reduziam-se muitos destes acessórios supérfluos característicos de países ricos e toda a parasitagem à máquina de um Estado pobre que consome grandes somas em representação. Esta questão foi aflorada pelos dois candidatos derrotados, Joaquim Monteiro e Albertino Graça, e foi erradamente ridicularizada pelo candidato vitorioso que, na realidade, só vê a vida através da actual constituição democrática que, aliás, ajudou a redigir. De resto, o eleito teve uma prestação fraca, não falou de nada para além da constituição a qual talvez possa ter sido a razão da exagerada abstenção. Joaquim Monteiro foi o único candidato que falou da miséria e do desemprego que se vive em Cabo Verde e da máquina do estado muitas vezes impiedosa para com os pequenos mas promovendo a riqueza para dentro do próprio sistema. Portanto quando não se debatem os problemas reais de um país, a população desinteressa-se e o resultado é a abstenção. Mas, isto é um tabú sobre o qual ninguém falará: amanhã, todos se esqueceram já e volta-se o ciclo dos festivais!

José Fortes Lopes

1 comentário:

  1. Bem explanado. Assino por baixo.
    De facto, parece que o figurino deste nosso regime (democrático) foi concebido por quem não quis dar grande trabalho às meninges e por isso decalcou modelos jurídico-constitucionais que nada têm a ver connosco. Nem com a nossa mentalidade, nem com a nossa idiossincrasia, e muito menos com a nossa severa pobreza. Teríamos de olhar com olhos de ver para nós próprios para criarmos a nossa Constituição e a nossa arquitectura político-organizativa.
    Interpreto esta abstenção eleitoral (63,4%) como um sinal claro de que o povo se está marimbando para o cargo de presidente da república. Mas o mais natural será o titular do cargo não tirar qualquer conclusão sobre esta evidência, fazendo vista grossa ao facto de representar apenas 30% dos cabo-verdianos. Poderá dizer-se que em democracia é mesmo assim que as coisas funcionam, mas só o fará quem achar que um país pobre como o nosso se pode dar ao luxo de viver de simples formalidades institucionais, bordados jurídicos que enfeitam as secretárias do poder mas não entram nas barracas das periferias das cidades nem acrescentam milho às panelas.
    Li recentemente no jornal A Nação este apontamento: "os delinquentes continuam a apoquentar a cidade da Praia. Só nos últimos 12 meses, segundo dados do Ministério Público, o país registou 120 homicídios, sendo que a maior parte foi na Capital".
    Ora, isto causa arrepio aos que ainda se lembram do tempo de “diazá”.
    Quem alguma vez imaginaria que passados 40 anos da independência efusivamente festejada haveríamos de nos confrontar com a trágica realidade dessa cifra? Esta e outras mais cifras de doloroso significado deviam, pois, suscitar uma urgente e profunda reflexão em Cabo Verde. A começar pelo ilustre cidadão que ganhou esta eleição presidencial. Se o fizesse, ao menos o seu cargo serviria para algo de útil. Desde que, do alto do seu púlpito, ele convocasse os cabo-verdianos, políticos, intelectuais e sociedade civil, para um repensar do país, a fim de se fazer tudo, mas tudo, o que seja necessário para o pôr nos carris de uma normalidade mínima e promissora de futuro. E isso passaria precisamente por todas essas reformas de que o Professor José Lopes fala e têm sido objecto das nossas conversas.
    Mas não, penso que as pessoas preferem continuar a tapar a realidade com o manto diáfano da fantasia. E os políticos vencedores de vitórias de Pirro a apregoar enunciados de intenções que valem tanto como um tostão furado.

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