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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

[9771] - CRÓNICAS DA NOSSA TERRA...


Bom dia ,hoje iremos até à ilha da Boavista com a Rute Barbedo.
Aprecie.
Seja pelo facto de ser época baixa ou pela separação de que fala Moraes Sarmento, nas ruas de Sal Rei, o centro urbano da ilha, não se sente o peso dos passaportes e câmaras fotográficas. O ruído é manso e são mais os táxis do que os passageiros. Mulheres com força para carregar uma família inteira levam, desta vez, bacias floridas de papaia, manga e banana sobre as cabeças. As ancas são sempre largas, coloridas, e os olhos espiam qualquer pele luminosa que se cruze no caminho. No Esplanada, bar com tecto de folhas secas de palmeira, come-se uma boa cachupa guisada com ovo estrelado. É o prato do pequeno-almoço, do almoço, do lanche e do jantar, o que nunca cansa um bom cabo-verdiano, ciente da vida medrante numas garfadas de calorias.

É também em Sal Rei onde há mais rua: de noite, os amadores do Santa Bárbara tocam mornas e bebem Strela (a cerveja nacional), mas “só no fim-de-semana”, como ressalva João, pescador da Praia (capital do arquipélago, situada em Santiago) atracado na Boa Vista; ao meio-dia, joga-se à bola de pé descalço no campo municipal. Apesar dos quase 30 graus, os ventos alíseos e os banhos de festa na praia do Estoril põem o clima sereno. E às horas em que a vila parece ter tirado uma sesta, o mais certo é encontrarmos música e corpos que dançam no Bairro da Barraca, renomeado Bairro da Esperança para que se dissipem aos olhos mais desatentos as suas origens clandestinas. “Vivem lá muitas pessoas que trabalham nos hotéis e vendedores de artesanato, do Senegal e da Guiné”, descreve Djão. Numa volta pisam-se charcos, vende-se café, seca-se peixe a céu aberto. A música dispara das janelas, assim como as moscas, na denúncia de uma frágil estrutura sanitária. Aqui se montou o bairro da sobrevivência por se tratar de solo fértil. “Havia ali uma fonte que antigamente fornecia água a toda a vila”, aponta Djão, na terra onde já se contaram sete anos sem chuva.

“É um país onde os maiores recursos são os humanos”, nota o investigador Eduardo Moraes Sarmento. E é neles que pulsa Cabo Verde. Voltamos, então, à vida simples, que implica acordar cedo para soltar a rede ao mar, reparar o barco, ir ao trapiche tirar a calda à cana-de-açúcar, cortar a lenha que mais tarde irá abraçar o xerém. Maria do Carmo está lá fora, debaixo da ramada do maracujá, a espreitar o milho lento na panela de alumínio. “Nós já não pomos porco, que o meu marido não come… Quando é cachupa rica, pomos milho, feijão-pedra, carne, chouriço, batata-doce, couve, alho, galinha, mandioca.” E quando é pobre? “Ahh… Leva sempre milho e feijão! E depois juntamos atum, que é o melhor”, ensina a cozinheira no país onde o peixe é a fartura que mais mata a fraqueza (Djão já nos havia explicado que em Cabo Verde ninguém gosta de dizer “fome”, porque esse é um assunto sério).

Perguntamos ao marido, o senhor Brito, o que fazia antes de passar o tempo a dedilhar a viola. Sorri dos olhos às mãos para contar que “era pescador, agricultor, carpinteiro, pedreiro…” “Então disseram-me se fazia aquilo tudo, não podia ter profissão.” A casa, erguida pelas mesmas mãos da viola, continua em construção. Sabe que se um dia parar, fica sem isco na vida (e assim tem menos um imposto para pagar). Mostra fotografias dos filhos, convida a beber grogue. No terraço voltado para a planície cor-de-terra – como, aliás, é quase toda a ilha – conta que antigamente, durante as festas juninas de Santo António, havia quatro bailes. “Entretanto acabaram porque agora as pessoas são de outras ilhas e africantes [refere-se aos imigrantes vindos sobretudo do Senegal e da Guiné, em busca de uma vida melhor alavancada pelo turismo].” A mulher aproxima-se para adicionar à conversa: “O mundo está a mudar e agora tem muito atrevimento.” Como assim, atrevimento? “Antes não havia gás, era tudo a lenha. E agora quando cozinho na lenha, os meus filhos reclamam. Não gostam do cheiro a fumo.”

Figueiras e tarrafes

A catchupa a ficar pronta e Diddy à espera na pick-up de cheiro a novo. Na Boa Vista, andar de táxi – ou de “aluguer”, como também se diz por aqui – é das poucas maneiras de conhecer a ilha: primeiro, porque os caminhos nem sempre estão marcados; depois, porque os motoristas são bem mais do que mãos no volante: tornam-se companheiros de prato, partilham hits musicais, contam histórias com a leveza que lhes vai na boca. Enfiam-se as rodas em trilhos de terra seca, já os arbustos rasteiros e as palmeiras são miragem, para desenhos na areia longa da praia de Santa Mónica. Os caranguejos fogem correntes para o mar, em velocidade contrária à que se vive na ilha. Avistam-se três fatos de banho ao longe, bem longe. Dá tempo de gritar, mergulhar a cabeça nas ondas brancas e voltar ainda antes do eco.

Quebramos a sesta de Diddy para seguir viagem, rumo à aldeia de João Galego, no Norte. A publicidade desbotada da Coca-Cola aguenta-se no ramo de uma acácia; ao lado, o rosto de Amílcar Cabral surge retocado numa parede. “Isto é o centro”, indica Diddy, e o centro é uma praça onde se encaixam seis carros noutro tanto de casas. João Galego tem pedra no chão para que os cavalos passem a galope a fazer acontecimento na aldeia. O café estar fechado não é problema, que do passeio se faz esplanada para jogar às cartas, às escondidas do sol africano. Também é assim no Fundo das Figueiras ou em Cabeça dos Tarrafes, aldeias encolhidas, cada vez mais demoradas. Há sempre um comerciante a tentar vender artesanato, com um guião comum: “França? Itália? Portugal? Uma ou duas semanas na ilha? Cabo Verde é no stress.”

Na primeira povoação, acompanha-se o “dónute” de coco com uma Coca-Cola Nha Kretcheu (“gosto de ti”, em crioulo cabo-verdiano). Na segunda, encontra-se Mário (nome fictício) no alpendre, a refrescar o tempo. Depois da emigração e do mar que o levou às neves suecas e “por todo o mundo”, quis voltar à terra. “Tenho uma casa de praia aqui perto, onde vou passar os fins-de-semana”, conta, a fazer-nos ver que uma ilha é mundo suficiente para ter para onde viajar. Nesta, até há um deserto no meio, o de Viana.

 Sentimos Diddy cansado. As sestas são-lhe curtas. Põe-nos num instante no hotel para que as águas mansas da piscina, à vista, façam assentar as ideias de um dia sobre rodas. Os animadores puxam para dançar, tramam aulas de ginástica, chamam para cocktails de abacaxi. “Vamos adequando os nossos programas ao público do resort. No Verão, por exemplo, há muita animação e muita festa”, explica o belga Nick Wauters, responsável pela equipa de animação do Iberostar. Vive em Cabo Verde há 15 anos e chegou a gerir o Mazurca, a mítica discoteca dos boavistenses. Conta que os ritmos estão a sair da morna (que se diz ser originária desta ilha) e da coladeira para chegar mais ao zouk e ao kizomba. “É a nova geração”, resume, com a certeza clássica de que “qualquer cabo-verdiano gosta de festa”.  

Mas a Boa Vista não é ilha de arromba, isso é certo. “Festa faz-se em São Vicente”, confirmaram os conversadores desta viagem, ainda que aqui se dance com mais vontade do que em qualquer canto português (no Mazurca, no Max Clube ou no Morabeza, de pé na areia). A festa da Boa Vista faz-se em ver um humano acenar numa extensa paisagem de terra. Ter no coração um deserto e nos braços o lugar onde milhares de tartarugas caretta caretta – o símbolo da ilha – desovam todos os anos não é para todos os lugares. É para este, onde o mundo é tão largo que nos faz querer correr na praia em vez de nos fixarmos nela.

(Sugestão de Manuel M. da Silva)

4 comentários:

  1. Texto curioso. Só não entendo o motivo de começar por um "bom dia", quando as pessoas que chegam ao Ac'A tanto podem vir a fazê-lo de manhã, como à tarde ou quase à noite, como eu. Também não percebo o contexto da tal afirmação do tal "Moraes Sarmento", se é o Eduardo, professor da Lusófona ou outro MS e se o diz em "Os desafios do Turismo Sustentável em Cabo Verde", se nas "Tendências Mundiais do Turismo e o Posicionamento de Cabo Verde enquanto Destino Atlântico" ou outro. O Ac'A tem de esclarecer estas coisas. Caso contrário, não voto nele para melhor blogue de Queluz e arredores (incluindo nestes arredores o resto do mundo, seja de manhã, à tarde ou à noite).
    Já agora, também ninguém ficou a saber se o texto saiu no New York Times ou no Público, no Le Monde ou no El País...

    Braça com precisão,
    Djack

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    1. A crónica foi reproduzida tal como a recebi do Manuel Marques da Silva (Mané de Nhô Céza')...Talvez ele possa elucidar as dúvidas colocadas... Incui o "Bom Dia" pois não era noite quando a autora escreveu a crónica, com certeza...

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  2. Sempre é "Eduardo", mas só o descubro longe no texto.Isto não se faz a um leitor encartado, não se faz.

    Braça com mais tempo,
    Djack

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  3. Li com prazer esta crónica escrita com arte e bem temperada com o sol e a areia da Boavista.

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