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terça-feira, 1 de novembro de 2016

[9866] - A "CLARIDADE" E S. VICENTE...

COM RESPEITOSA VÉNIA AO BLOGUE "ESQUINA DO TEMPO" E AO SEU MENTOR, PROF. MANUEL BRITO-SEMEDO...

Foto Fritidsresor


"CLARIDADE", FINCAR ÂNCORA EM TERRA...

A Revista Claridade está umbilicalmente ligada à Cidade do Porto Grande e à Ilha de São Vicente.

Nas décadas de 20 e de 30, do século XX, São Vicente era a mais importante das ilhas do Arquipélago pelo seu movimento de navegação marítima, contribuindo com dois terços do rendimento total da Colónia, e pelas condições únicas que possuía e que proporcionaram o surgimento de um movimento cívico, literário e cultural da envergadura do Movimento da Claridade.

Senão, vejamos: (i) tinha um operariado activo e consciente; (ii) tinha uma burguesia esclarecida, ciente dos seus direitos e disposta a criar uma ampla frente para a defesa dos interesses da Colónia; (iii) tinha uma elite intelectual comprometida e politizada; e (iv) tinha uma sociedade civil de fácil mobilização à volta de causas.

1. Um Operariado Activo e Consciente

Essa tradição vem da sua experiência laboral na boca do porto onde tinha de defender os seus interesses junto das companhias inglesas de carvão, dos armadores ou dos Shipshandlers. Recorde-se que, em Dezembro de 1913, foi criada em Mindelo uma Associação Operária 1.º de Dezembro e, estando Pedro Cardoso em S. Vicente, discursou na cerimónia de tomada de posse dos seus corpos sociais, tendo dedicado aos operários mindelenses, o poema “Unidos, Avante”, onde invoca “Marx, o Mestre venerando”. Posteriormente, em Setembro de 1921, foi fundada a Associação Operária Caboverdeana de Socorros Mútuos, que viria a desempenhar um papel importante na defesa dos interesses dos trabalhadores da ilha.


2. Uma Burguesia Esclarecida e Disposta a Defender os Interesses da Colónia

Em Julho de 1920 foi fundada a Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Barlavento (ACIAB), uma iniciativa da classe dos proprietários e comerciantes, de que Manuel Velosa viria a ser Presidente, Jonas Whanon, Vogal Substituto, e Baltasar Lopes da Silva, Membro, em representação do pai, proprietário e comerciante em São Nicolau. Esta Associação, procurou, por diversas vezes, angariar fundos para combater a crise do desemprego na ilha.

Ainda nessa linha, são os principais comerciantes e intelectuais estabelecidos em São Vicente que, em Abril de 1931, criaram a Sociedade de Tipografia e Publicidade, Lda., cujo objectivo era a exploração da indústria gráfica e o comércio de livros, para editar, prioritariamente, o jornal Notícias de Cabo Verde (1931), tendo dado à estampa a revista Claridade (1936), o primeiro número da Certeza (1944) e do número único do Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes (1949), para além dos jornais Defesa (São Nicolau, 1933) e Ressurgimento (Santo Antão, 1933).

Em Dezembro de 1932 viria a surgir ainda a iniciativa da criação de uma União Regionalista Caboverdeana, uma associação de carácter político, social e cívico. Segundo o seu projecto de Estatutos, o­ seu programa ia desde a reforma da organização administrativa da Colónia, passando pela reorganização e concentração dos serviços públicos, até pugnar para que à Colónia fosse atribuída interferência na designação do seu governador, ou mesmo à consulta obrigatória dos agrupamentos interessados antes da promulgação das leis de carácter social e económico. Tal Associação não viria a ser autorizada, mas o propósito da sua constituição e o teor dos seus estatutos são suficientes para evidenciar a crescente consciência das elites das ilhas sobre a autonomia do arquipélago.

3. Uma Elite Intelectual Comprometida e Politizada

Pelo facto de o Liceu Nacional estar sedeado em Mindelo, desde 1917 – um segundo liceu só viria a ser criado em 1960, na Praia – aliado ao facto de também funcionar como local de entrada das modas e de todas as novidades, fazia desta cidade um centro irradiador de instrução, de cultura e de bom gosto.

Nos finais dos anos vinte, princípios de trinta, encontravam-se em São Vicente, Baltasar Lopes (n. São Nicolau, 1907), regressado do curso nos finais do ano 30, Manuel Lopes (n. São Nicolau, 1907), empregado da Western Telegraph; João Lopes (n. São Nicolau, 1904), regressado dos EUA, caixeiro-viajante entre as ilhas; Félix Monteiro (n. São Vicente, 1909), estudante finalista do liceu; Jaime de Figueiredo (n. Praia, 1905), funcionário dos Correios; Manuel Velosa (n. Santo Antão, 1901), comerciante e proprietário; Jonas Whanon (n. São Vicente, 1903), industrial, apenas para me referir aos que estavam ligados à Claridade.

4. Uma Sociedade Civil de Fácil Mobilização à Volta de Causas

Foi assim na mobilização à volta da situação de miséria que se vivia em 1934, a qual veio a desembocar na revolta de Nhô Ambrôze, foi também na mobilização à volta da extinção do Liceu Central Infante D. Henrique, em 1937, que levou o Governo de Lisboa a recuar na sua decisão e criar, doze dias depois, em seu lugar, o Liceu Gil Eanes.

Em Abril de 1934, a Câmara Municipal, presidida por Manuel Ribeiro de Almeida, comerciante e proprietário do jornal Notícias de Cabo Verde, frustrada por não ter condições para levar a cabo as obras de ressurgimento da ilha de São Vicente e a resolução dos seus problemas, deliberou, solicitar a sua demissão ao Governador da Colónia por “nos sentirmos cansados e por ser justo que outros também cumpram os seus deveres cívicos”.

Dois meses após, o grupo de amigos de Baltasar Lopes, de que fazia parte Manuel Velosa e Jonas Whanon, extremamente preocupado com a miséria que grassava em São Vicente, decidiu que tinha de actuar de qualquer modo e entendeu que teria impacto se o povo saísse à rua numa manifestação. Para que esta seguisse em ordem, pediu a Nhô Ambrose que saísse com o povo mas que o recolhesse pouco depois para evitar distúrbios. Os resultados da manifestação e da militância cívica saldaram-se em um morto e dois feridos, prisões e penas para os mais comprometidos na manifestação a serem cumpridas nas ilhas da Boa Vista e Sal, e a deportação de Nhô Ambrôze para Angola. Para os comerciantes foi aplicado, um imposto ad valorem de 3% sobre todas as mercadorias que o comércio de São Vicente importasse, por se ter solidarizado com o povo nos distúrbios.

Um outro acontecimento marcante e de mobilização deu-se na noite de 28 de Outubro de 1937. A Rádio Colonial Português difundiu a notícia de que tinha sido publicado nesse dia um decreto extinguindo o Liceu Central Infante D. Henrique de São Vicente criando, em contrapartida, uma escola comercial e industrial e ainda uma escola agrícola na Praia. Em poucos minutos, São Vicente conhecia essa notícia, que depressa se espalhou, e Cabo Verde ficou de luto.

No dia seguinte, a pedido da população da cidade, reuniu-se a Câmara Municipal em sessão extraordinária. A sala de sessões e o corredor ficaram cheios de pessoas de todas as categorias da cidade e de muito povo, tendo estado representadas largamente as associações de classe, associação dos pais dos alunos do Liceu, Organizadores da União Nacional, Imprensa, Associação dos Falcões de Cabo Verde e Associação Escolar do Liceu, Clubes desportivos, Associação Operária, etc. Em nome da população falou o Presidente da ACIAB (“Nhô Fidjito”).

Surgiu logo uma movimentação pró-liceu que desencadeou uma cruzada que uniu a todos, oficiais e particulares, para o salvar. O jornal Notícias de Cabo Verde, de 1 de Novembro, ironicamente, véspera do dia de finados, sai com uma tarjeta negra e em grandes parangonas a frase: “CABO VERDE DE LUTO! A Extinção do Liceu”. O editorial é de amargura e dolorosa desolação.

A 9 de Novembro, chegava a toda a parte a notícia de que o Liceu ressuscitara. A Câmara Municipal, assim como fizera no dia do seu encerramento, reuniu-se para festejar a sua reabertura e “raras vezes, ou nunca, a nossa cidade vibrou, num regosijo tão geral e expontâneo”.

É neste ambiente social, político e cultural da ilha de São Vicente que surge a Claridade que, merecidamente, se assinala o 80.º aniversário.

– Manuel Brito-Semedo


2 comentários:

  1. O Brito Semedo não precisou de um longo estendal de palavras para contar a história de S. Vicente na primeira metade do século XX e explicar que a ilha foi a alma e a força motriz do arquipélago.
    Se houvesse consciência histórica e amor à verdade, por parte dos actuais governantes do país, o próximo ano seria de jubilosa festividade à escala nacional. Mas não, tenho dúvidas que as iniciativas transcendam a própria ilha, e isto se lho for permitido. Porque o poder político apostou numa centralização como filosofia de dominação. Não contente com o seu vector político, com tudo o que implica de privilégio e exclusividade em relação à capital, vai-se ao cume de pretender impor uma hegemonia cultural e linguística, com tudo o que acarreta de condenável e odioso, para não dizer de atentado à História.
    Parece haver intenção de apagar a História da ilha de S. Vicente, desvalorizando-a ou minimizando o seu significado, talvez por representar uma visão de Cabo Verde diferente daquela que é perfilhada pelo poder centralizado e concentrado na Praia.

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  2. Eu sou de um tempo em que, em S.Vicente, as Forças eram Vivas e actuavam célere sempre que houvesse necessidade para o interesse de Cabo Verde em geral. Também me lembro do impacto cultural da Claridade e de quase todos os corajosos que conseguiam ultrapassar os meandros artificiais que lhes eram criados pelas autoridades. Não sou do tempo de Nhô Ambrôse, elevado ao posto de "capitão" pelo imaginativo Gabriel Mariano, mas nunca esquecerei do ressentimento do povo mindelense quando mandaram para o Tarrafal, simplesmente por terem discordado das injustiças, os comerciantes Abílio Monteiro Macedo, Henrik Kahn e mais dois ou três arautos cujos nomes não me ocorrem.
    Neste meu comentário quero lembrar os que foram e agradecer ao Prof. Manuel Brito-Semedo pelo seu artigo aqui publicado ... e não só.

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