MIGUEL DA CONCEIÇÃO MOTA CARMO
O Homem, o Militar e o Administrador
CAPÍTULO VIII
O imaginário popular em torno do Mota Carmo
Todas as figuras públicas estão sujeitas ao escrutínio popular, em grau variável com a natureza das suas personalidades ou com o tipo das suas lideranças. Não raro, surgem rumores, boatos e por vezes invenções puras e simples, dando razão a este aforismo: “ quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”. É neste húmus que nasce e cresce o anedotário.
Ora, o estilo de liderança do Mota Carmo era mesmo daqueles que se põem a jeito para cair “na boca do povo”. Mas estou convencido de que ele pouco ou nada se ralava com isso, mais preocupado em levar por diante a sua missão de serviço público do que em medir a par e passo os índices da sua popularidade. É certo que naquele tempo era relativamente fácil adoptar semelhante postura, pois o exercício do poder autocrático tem as costas protegidas, ao contrário do poder democrático, que não dispensa o barómetro da opinião pública.
Posto este intróito, passemos a analisar as opiniões de duas pessoas sobre o Mota Carmo como administrador. São dois textos em estilo de crónica. O primeiro transcreve-se quase na íntegra, e em relação ao segundo apenas se comenta o seu conteúdo, dele se extraindo apenas um excerto: letra da morna sobre a questão das “saias curtas”.
Da autoria de Viriato de Barros, a crónica:
Regresso a Cabo Verde
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Mas Mota Carmo exercia um despotismo que hoje se chamaria talvez cirúrgico. Uma altura, deu-lhe, por exemplo, para embirrar com as saias curtas (imagine-se!) das meninas e mesmo de senhoras da prestigiada sociedade mindelense, que não faziam mais do que seguir a moda do momento que chegava a Mindelo através das revistas da época, dos visitantes que de passagem chegavam à cidade dos navios transatlânticos que escalavam o Porto Grande, e das nossas viajantes de regresso de várias partes do mundo "sima Bia di Bibi". Portanto, era puro abuso do Mota Carmo, mas passava. E deu ordens à polícia para abordar toda a menina ou senhora que assim se apresentasse em público e intimá-las a ir para casa "baixar a bainha" sob pena de ir parar à cadeia. Um administrador que entendia que devia, entre outras coisas, zelar pela moral pública evitando esses "atentados ao pudor público". E não admitia desafios às suas ordens, como ficou provado quando por via dessa ordem foi abordada e intimada uma senhora da sociedade mindelense de conduta a todos os títulos irrepreensível, decisão que provocou justo repúdio no meio. Mas assim funcionavam e funcionam os abusos de poder e nem Mindelo esteve sempre livre disso. Mota Carmo não parecia tão pouco simpatizar muito com certas confissões religiosas que se afastavam do cristianismo mais ortodoxo digamos assim, sobretudo quando a praxis de tais confissões implicava certos tratamentos naturalistas. Acreditava mais nas vantagens da ciência médica do que em certas modalidades de banhos semi-decúbicos. Embora nunca tivesse chegado a concretizar as suas ameaças, chegou a prometer em privado que "qualquer dia ainda acabava com aqueles banhos de... "... bem, aqui as reservas impostas pela minha educação tradicional impedem de citar Mota Cramo ipsis verbis.
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Todavia, os mindelenses sempre olharam para as coisas deste capitão da guarda com uma certa condescendência, na convicção de que, no fundo, tratava-se de um homem rude, um tanto grosseiro na sua linguagem de caserna, mas que na realidade nunca fez mal a ninguém naquela terra. Era um homem que jogava, apesar de tudo, segundo consta, com lealdade e tinha um certo sentido, ainda que grosseiro, de humor, dois traços de carácter que os mindelenses sempre apreciaram: "fair play" e "sense of humour", passo os anglicismos, irresistíveis nas circunstâncias. Mas Mota Carmo foi um caso singular, até certo ponto, na história mindelense.
Meu comentário:
O Dr. Viriato de Barros, ilustre cabo-verdiano e homem de letras, provavelmente não terá tido um conhecimento directo dos factos que aqui narra, mas sim mediante aquilo que ouviu. No entanto, o que diz não estará longe da verdade. Corrija-se apenas a referência sobre o ”comandante da guarda nacional portuguesa”, já que Mota Carmo era oficial do Exército e não da Guarda Nacional Republicana (GNR), se bem que esta fosse enquadrada nos escalões médios e altos por oficiais do exército. Mas, de facto, este oficial serviu na GNR nos primeiros anos da sua carreira. Quanto ao resto, realce-se a observação sobre o “fair-play” e a “lealdade” do Administrador, que este cultivava na sua relação com o povo da ilha. Lembre-se que esta faceta do carácter do Administrador veio ao cimo no confronto que ele teve com o Nuno de Miranda a propósito da revista “Certeza” (capítulo V). Diria ainda que ele primava pela frontalidade dos seus actos, desprezando os subterfúgios, os mexericos e os pequenos ardis. Não concordo com o autor do texto quando afirma que Mota Carmo era “um homem rude, um tanto grosseiro na sua linguagem de caserna”, e entendo que essa observação deve ser objecto de uma clarificação. É comum colar essa imagem a alguns militares, em alusão ao estilo de relacionamento com as classes inferiores, em especial os soldados, que em tempos recuados eram na sua maioria pouco escolarizados. É provável que o Mota Carmo, na função de comissário da polícia, que acumulava, tenha utilizado, em certas situações, linguagem rude no seu trato com a população, nomeadamente em casos de admoestações, reprimendas, advertências, etc., no entendimento de que não haveria diferença entre o soldado analfabeto e as classes populares pouco instruídas. No entanto, quem lê a entrevista dada por ele (capítulo III), tem de reconhecer ao entrevistado um certo buril, e até estilo, na linguagem utilizada, para além da inteligência, sensibilidade psicológica e subtileza com que analisa a situação social na ilha e direcciona alguns “recados” à sociedade mindelense.
Os banhos a que o Viriato de Barros chama de “semi-decúbico” consistiam na imersão do corpo, despido da cintura para baixo, num recipiente com água e no meio do qual se colocava um pequeno banco em que se sentava. Os guias das sessões de espiritismo (ou racionalismo cristão) receitavam esse banho, acreditando que produziam uma cura pelo contacto da água com as partes inferiores do corpo. Ora, como isso era à margem da medicina convencional, daí a intervenção do Mota Carmo. Mas a graça do dito – “qualquer dia acabo com esses banhos de….” – reside na corruptela do termo em crioulo: “banho de semicu”. Isto demonstra que o Mota Carmo tinha efectivamente sentido de humor ou que o refinou e adaptou à vivência mindelense. Lembro-me de que, no meu tempo de menino e moço, essa expressão “banho de semicu” era efectivamente utilizada com certa carga de humor. Não sei se foi inventada pelo Mota Carmo ou se simplesmente dela se apropriou.
Do outro texto, de Juliana Braz Dias e intitulado “LÍNGUA CRIOULA E CULTURA POPULAR EM CABO VERDE: MÚLTIPLAS VOZES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE UM POVO”, Universidade de Brasília, transcrevo apenas o que achei merecer maior interesse ̶ a morna composta por Jorge Monteiro a respeito das “Saias Curtas”. Eis a sua letra:
La pa qu’es banda de Compe Nove
Tem um casinha qu’es ta tch’ma vôvô
El ta tcheu de menininhas
Qu’es panhâ na morada
Por causa de se’s sainhas
Ess home nhô Mota Carmo
Tem tude se direito
De q’rê caba
Qu’es poco respeito
Tradução:
Lá para aquelas bandas do Campo Novo
Tem uma casinha que chamam de Vovô (1)
Ela está cheia de menininhas
Que eles apanharam na cidade
Por causa de suas saiazinhas
Esse homem, o Senhor Mota Carmo
Tem todo o direito
De querer acabar
Com essa falta de respeito
(1) Cadeia, prisão
Meu comentário:
Outros aspectos do discurso da autora, que é brasileira, acabei por não achar pertinente transcrevê-los por não conterem informação com rigor histórico no que toca àquele que ela trata por “Governador da Colónia”, o que em si mesmo é suficientemente revelador de uma base factual que enferma de erros não aceitáveis. É certo que o texto foca mais a questão da língua e da cultura e este desiderato é atingido com eficácia. Quando a autora ilustra o seu discurso com a morna das “Saias Curtas”, entre outras mencionadas, o que nos pretende é dar uma mostra da criatividade e do imaginário cultural do povo de S. Vicente. Porém, quando aborda o drama da emigração para S. Tomé e coloca Mota Carmo no epicentro da sua narrativa, parecendo querer relacioná-lo com as causas desse lamentável fenómeno “migratório”, acentuando o seu protagonismo pessoal na efectivação do processo, aí incorre em erro crasso que atribuo a uma insuficiente informação ou distorção dos factos, por provável influência de fonte pouco credível. Todos sabemos que o fenómeno da “emigração” de contratados para S. Tomé teve início no século XIX, muito antes de Mota Carmo ter nascido, e continuou para lá da vigência da sua administração. O administrador entraria no processo dos contratados apenas por exigência das suas atribuições oficiais, não se podendo de modo algum, sob pena de desonestidade intelectual, julgá-lo como elemento interessado naquilo que era uma exploração oportunista da mão-de-obra cabo-verdiana. Aliás, o mesmo aconteceu com os seus sucessores no cargo, todos eles cabo-verdianos.
Também aqui vem a talho de foice a questão das “saias curtas”. O assunto mereceu da população de S. Vicente mais uma daquelas suas proverbiais atitudes jocosas do que reacção azeda ou exacerbada. Nisto, concordar-se-á com o que atrás disse o Viriato de Barros sobre o “fair play” que marcava as relações entre o Administrador e a população. De resto, não acredito que alguma vez a cadeia se tenha enchido com “mnininhas” presas só por causa do delito das saias curtas. Seria de todo despropositado e pouco condizente com o “fair play” que o próprio Viriato de Barros reconhece a Mota Carmo.
É do conhecimento público, confirmado por pessoas antigas daquele tempo, que o Administrador costumava mandar utilizar os presos da cadeia civil em trabalhos de descarga de navios no porto e provavelmente em outro tipo de actividade. Haverá quem possa censurar uma medida deste género, considerando-a arbitrária, assim como haverá quem a julgue uma iniciativa aceitável e preferível a ter pessoas enjauladas e sem qualquer possibilidade de ressarcir a sociedade pelos delitos cometidos.
Também sabe-se que o Administrador Mota Carmo tornou mais rigoroso no seu tempo o processo de inspecção médica das prostitutas, que possuíam uma caderneta para o seu controlo sanitário. Será isto uma medida abusiva? Deve lembrar-se que naqueles tempos as regras de higiene pessoal não eram tão praticadas como hoje, nem em Cabo Verde havia as melhores condições de vida para a sua observância. Para mais, o Porto Grande de S. Vicente recebia muitos marinheiros estrangeiros dos navios que nele aportavam, pelo que a situação se tornaria gravosa se nada se fizesse no campo da prevenção contra as doenças venéreas. Além do mais, penso que essa medida envolveria tanto o Administrador do Concelho como o Delegado de Saúde, pois em princípio ambos teriam de estar em sintonia sobre questões essenciais da saúde pública.
A proibição das vendas de produtos alimentares nas ruas foi outra medida que Mota Carmo levou muito a sério, no intuito não só de salvaguardar a saúde pública como de impor equidade de tratamento entre todas as vendedeiras, já que não é aceitável umas pagarem a respectiva taxa no mercado municipal e outras fugirem a essa imposição. Note-se que actualmente este problema voltou à ordem do dia em todas as ilhas de Cabo Verde, já que tem vindo a acentuar-se o abuso da prática de vendas de rua. Tanto é assim que muitos cabo-verdianos, quer residentes quer os que visitam a terra natal, se queixam da imagem terceiro-mundista que está a apoderar-se das nossas cidades. É voz corrente que a intenção do Mota Carmo era elevar a cidade do Mindelo a uma dignidade compatível com qualquer urbe europeia de idêntica dimensão.
Em suma, o estilo de liderança do Mota Carmo levava-o a intervir sem tréguas em todo o espectro das suas atribuições e responsabilidades. Nada deixava ao acaso e não era homem timorato ou que deixasse de ir ao fundo dos problemas quando entendia estar em causa o bem público. Ora, um homem desta estirpe naturalmente que não reúne consensos e alimenta o imaginário popular tanto no bom como no mau sentido.
Adriano Miranda Lima
̶ Continua ̶
MOTA CARMO: O imaginário mindelense popular em torno do Mito Mota Carmo.
ResponderEliminarComo se forjou o mito Mota Carmo?
Como é que o homem que não estava por meias medidas quanto às leis, à disciplina e à moral, quase militares daqueles tempos, tornou-se no Mindelo liberal, anglófilo, no terror, no Papão da burguesia mindelense e de alguma população mais ou menos inclinada à 'desbunda'. Uma coisa é certa Mota Carmo entrou em rota de colisão com o meio mindelense, por algumas incompreensão mútuas, incompatibilidades culturais com alguns meios desta ilha não muito dados à ortodoxias, ou mesmo pela natureza da formação rígida como militar que ele era!!! Esta é talvez a razão da caída num certo esquecimento deste homem que deixou obra na ilha um nome que talvez injustamente acabou usado sempre no sentido pejorativo
Adriano Miranda Lima diz e bem:
'Todas as figuras públicas estão sujeitas ao escrutínio popular, em grau variável com a natureza das suas personalidades ou com o tipo das suas lideranças. Não raro, surgem rumores, boatos e por vezes invenções puras e simples, dando razão a este aforismo: “ quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”. É neste húmus que nasce e cresce o anedotário.....'
Não posso senão regozijar-me do Adriano ter finalmente decidido publicar a obra sobre o Administrador, obra que pensou utilizar unicamente para mostrar a três das suas netas quem foi essa figura que tanto deu que falar em Cabo Verde. Tendo eu nessa altura idade para observar, digo agora que a sua acção foi altamente positiva destoado unicamente na sua parte privada onde usou e abusou a ponto de criar detractores e mesmo alguns inimigos.
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