Chamava-se Necas, a bela morena que me matava a sede, enquanto lá fora o sol dardejava os seus raios inclementes sobre a vila e os corpos suados dos raros passantes, de passo estugado, como se todos tentassem escapar ao fogo que a natureza derramava sobre as suas cabeças escaldantes...Era bem mais fresca e reconfortante a visão da cabritinha que, por momentos, remeteu o meu pensamento para as "feiticeiras de cor morena" do Mindelo, passeando as suas atrevidas mini-saias da era pós-Mota Carmo pelas ruas de morada e no rodopio sem fim da Praça Nova, no início das noites cálidas, serenas, misteriosas, lembranças que me envolveram numa nostalgia ansiosa e num súbito desejo de regresso às águas mansas da Baía-das-Gatas, aos braços da família, ao convívio dos amigos, ao leite de cabra, aos bifes durinhos do Antonin Carne e, sobretudo, ao carinho envolvente de uma esposa com núpcias adiadas desde 3 de Outubro de 1957, íam já decorridos cerca de quatro anos...
E, por azar, quanto mais o tempo passava mais difícil se tornava a decisão de mandar Maiúca embarcar de S.Vicente para Luanda...É que as notícias que vinham do norte de Angola começavam a ser preocupantes e já constava que os camionistas de longo curso, tinham trocado as suas carabinas de caça por FNBP-G3, que disparavam um ror de balas por segundo...Tudo indicava que a coisa tinha tendências para piorar num despertar de violência alimentada por gerações de relações laborais conflituosas fruto de práticas de trabalho forçado nas grandes plantações de café, de algodão, e de cana-de-açúcar, graças às quais, segundo constava à boca pequena, muitos Chefes-de-Posto, Administradores e, até, Governadores Distritais, tinham enriquecido, recebendo gordas luvas pelos chamados "voluntários da corda" arrebanhados, não raramente, com a conivência dos Sobas locais...
Não era, pois, o ambiente mais recomendável para dar início a uma vida a dois e creio que foi naquele momento que comecei a pensar, seriamente, em abandonar Angola que, até ali, eu tinha elegido como minha terceira pátria, uma espécie de terra prometida, onde todas as coisas atingiam dimensões que arrebatavam quem quer que ali chegasse provindo de cenários de horizontes mais limitados...
Fui despertado da semi-sonolência dos meus pensamentos pela algarviada de um cipaio que me trazia o recado do senhor Administrador segundo o qual parecia que tinha sido restabelecida a circulação na estrada para Malange...De volta à Administração, fiquei a saber que tinha havido problemas na, ou junta à ponte do rio Cutato -afluente do Cuanza - perto do Andulo e que, se eu quisesse, poderia seguir, no dia seguinte, de manhã cedo, num dos inúmeros camiões que íam saír em formação de combóio, depois de quase quatro dias de espera...Claro que aceitei e, de posse da respectiva Guia de Marcha, devidamente anotada, lá regressei à Chave d'Ouro, onde fui recebido pelo largo sorriso da morena Necas...Ou era a minha costela machista a funcionar ou a miúda (!) tinha engraçado comigo...De qualquer forma, no entanto, não haveria nem forma nem tempo para tirar isso a limpo pois, de ali a escassas horas, eu seguiria rumo ao Norte, decerto para jamais regressar, perdendo de vista, de forma definitiva a bela cabrita que, no entanto, nunca esqueci, com um misto de desejo e carinho que tempera os meus inúmeros regressos ao passado...
Aínda mal o sol tinha despontado para evaporar a espessa cacimbada, lá subi, meio a dormir, para um camião que transportava uma imensa máquina Caterpillar, na sua característica cor amarela e saudei o homem que, durante os próximos cerca de 430 quilómetros ía ser o meu guia e o meu companheiro de viagem... Chamava-se Clementino e era beirão, de uma aldeia de nome irrepetível...O ruído dos dezoito camiões arrancando em uníssono, era impressionante e, por momentos, senti-me como se toda aquele reboliço fosse prenúncio de uma grande aventura...
Na realidade, eu estava a adivinhar que algo de inusitado estava prestes a acontecer!
(Continua)
Mais um belo episódio desta aventura por terra angolana, recheada dos encantos, seduções e mistérios que só encontramos em África. Neste episódio vê-se que o coração romântico e já comprometido esteve quase, quase... Mas a vida seguiu o curso de acontecimentos que os crentes na predestinação dirão que já estavam escritos na pedra. Afinal, acontece com todos na idade jovem. Há um rosto, um sorriso, um olhar que por momentos nos cativam ou até enfeitiçam, mas muitas vezes são como uma estrela cadente, tão depressa aparecem como se extinguem, sem combustível para a viagem do futuro. Mas fica a recordação para alimentar a fantasia de um coração sensível.
ResponderEliminar...E ficou uma bela recordação, uma simpatia, um sorriso belo, um rosto bonito que a memória guardou felizmente, pois é a partir da evocação de Necas que temos mais este episódio recheado de dados, de cenários, de paisagens e de gentes de uma Angola de outrora, interessantemente registada na pena do nosso Zito.
ResponderEliminarAbraços
Ondina
Obrigado, amigos...Em boa verdade, acontecem, por vezes, coisas nas nossas vidas que a gente não consegue explicar...A minha memória da Necas conserva-se de tal forma preservada que eu, às vezes, me convenço que foi ontem....O calor que me reconforta a alma quando a evoco tem algo de metafísico pois transcende o mero desejo...Mau grado, esta história tem uma costela trágica, pois a pequena, por infelicidade, tinha - ou tem - o nome pelo qual era conhecido um tio meu (Manuel José) que foi um desastre da espécie humana...O humor negro dos acasos...
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