Lurdes Vieira é cabo-verdiana, nascida há oitenta
e quatro anos no Mindelo e criada na Praia. Aos dezassete anos rumou com os
pais e irmãos para a terra longe de Angola.
Sem saber, com ela levava um tesouro que só veio a dar por ele ao dobrar a
esquina das suas sessenta primaveras: as raízes da sua cultura gravadas no mais
profundo do seu ser, tais amarras de um navio que não se quer deixar levar ao
sabor das correntes marinhas... E é esse tesouro que Lurdes Vieira partilha
hoje generosamente numa homenagem à sua terra e às suas gentes.
Revelando desde sempre uma sensibilidade para as
artes manuais, que preencheram ao longo da sua vida os momentos de lazer da
exímia funcionária pública que foi, a artista descobre muito mais tarde a arte
de modelar o barro. E tudo aconteceu por acaso: um dia foi a uma olaria comprar
material para os seus trabalhos. Cruzou com uma senhora que trazia um tabuleiro
cheio de peças em barro para serem cozidas no forno do oleiro. Atraída e
deslumbrada com aquelas figurinhas, comprou um pouco de barro para ver “ o que
poderia fazer”... Uma nova fase da sua vida iniciava nesse momento com a
confecção da sua primeira obra: o busto de um velho, que espantosamente revelou
a capacidade artística de Lurdes Vieira no maneio do barro.
A partir daí o trabalho desta matéria preencheu a
sua vida aperfeiçoando-se ao longo dos anos, enquanto desenvolvia uma obra que
se pode considerar de cariz etnológico. É, na verdade, através do barro
modelado, a que insufla o sopro da vida com o sentir próprio da sua arte, que
Lurdes Vieira conta o quotidiano do povo cabo-verdiano, cuja riqueza está na
crença de si mesmo, na sua força, coragem e determinação num combate permanente
de sobrevivência. E tudo isto transparece na obra da artista. Ao trabalhar o
barro, estampa a alegria e a tristeza, a ternura e a força, a determinação e a
resignação, o vigor da juventude e peso dos anos nas expressões das suas
personagens. Crianças, mulheres e homens enchem-nos o coração de ternura
deixando-nos com vontade de conversar com eles por sentirmo-los vivos e tão
próximos!
É um regalo para os olhos o rosto terno da Mãe
crioula amamentando o seu filho ou
o Menino bambudo[3]
adormecido nas costas da mamãe. Enche-nos de compaixão o Menino
triste.
Apetece-nos dançar com as mulheres do Batuque[4] enquanto que nos
nossos ouvidos ressoam o coro das vozes e o repicar da tchabeta[5]. A Tocatina traz as recordações das
serenatas em que a morna é rainha. O Par
a dançar a mazurca, rigorosamente
trajado à moda antiga, o Par a dançar o
funaná[6] e o Par
a dançar a morna[7]
embalam-nos nos movimentos dos seus corpos. E o tradicional ritual do Cola Sam Jom[8] transporta-nos
para a festa graças aos seus mais pequenos detalhes em que não faltam o par de
dançarinos, o dançarino com o barco e as conchas de enfeite…
Como nos dá vontade de desafiar para uma partida
os Jogadores de uril ou brincar com o Menino da bola!
Ah! E quem não gostaria de provar a saborosa Catchupa
de nha Dona preparada com tanto carinho e com o milho que a Cutchideira[9] pilou logo pela
manhã?
Quantos corações não baterão perante a beleza
serena e a sensualidade da jovem Crioula !E quem não se revê na sua infância diante da Contadeira de estórias ou a receber a Benção da mamãe ou da vovó?
Sobe-nos ao nariz o cheiro da Pitada de cancã[10] e da Mulher grande fumando o seu canhoto[11]…
A
vendedeira de atum traz a
nostalgia do pregão « Atum, atum ! ».
Apetece-nos dar uma mãozinha ao Homem da enxada
que de sol a sol luta pelo seu pão contra o chão ingrato e a chuva ausente...
E quem não se reconhece naquela família repleta de
filhos Escadas que Deus dá em que os
mais velhos ajudam a criar os mais novos ?
Não ficamos insensíveis à cumplicidade do Velho
casal, fruto de um longo percurso nem sempre ameno. E nas rugas do Homem das ilhas, o velho badio[12],
lemos a vida árdua do seu povo.
São estas algumas das peças da obra de Lurdes Vieira. Cada peça é uma
homenagem aos pilares de toda uma sociedade: à mãe, à mulher, à família, às
tradições e lutas pela vida... E de peça em peça vai contando o viver do seu
povo.
São cenas da vida que a ceramista retrata e imortaliza nestas figuras, sob
o olhar cúmplice de Cláudio Vieira, seu companheiro de há mais de 56 anos. Cenas
da sua meninice, certamente algumas já desaparecidas das tradições de hoje, mas
que pertencem a um imaginário colectivo e ao património cultural de toda uma
Nação. Cenas que, tal como ela, gerações de cabo-verdianos emigrados levaram
consigo e transmitiram aos seus filhos e com elas as referências culturais das
suas raízes. E Lurdes Vieira soube conservá-las intactas na sua memória,
enquanto amadurecia em si essa arte de dar vida ao barro.
São formas, cores e expressões que brotam espontânea e naturalmente das mãos
desta incontornável figura das artes cabo-verdianas que tem como uma das suas
principais qualidades a humildade dos grandes seres.
1] Senhora, dona.
1] Prato tipo e emblemático de Cabo Verde, preparado à base de milho, feijões, carnes (ou peixe), mandioca, batata doce, banana verde.1] Às costas.
1] Dança, canto e música ritmada por uma cadência marcada por batidas com as mãos em rodilhas feitas com tecidos, interpretados por mulheres.
[1] Ritmo do batuque.
[1] Música e dança tradicional de Santiago, acompanhadas com ferro e gaita e mais recentemente com acordeão.
[1] Música típica de Cabo Verde cantada com um acompanhamento de violino, viola e cavaquinho.
1] Ritual das festas juninas das ilhas do Barlavento.
1] Mulher que pila o milho.
[1] Rapé.
[1] Cachimbo.
[1] Natural da ilha de Santiago. Termo também aplicado aos naturais de outras ilhas de Sotavento.
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