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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

[7268] - POEIRA DOS TEMPOS...


CONSULADO DOS ESTADOS UNIDOS – ILHAS DE CABO VERDE – MARÇO 1835

Senhores! – Tomo a liberdade de communicar-vos, para conhecimento do povo americano, e bem assim das outras Nações, a seguinte desagradável noticia, esperando que a sua publicação possa atrair sobre os bandidos o castigo que merecem. 
A 26 de Fevereiro desembarcaram aqui 225 Soldados vindos de Portugal, os quaes deviam ser distribuídos  pela Província depois que chegasse o resto da expedição. Em vez porém de permanecerem em socego, Sabado á noute (21 do corrente) elles prenderam todos os seus Officiaes, excepto um subalterno (e igualmente os primeiros, e segundos Sargentos), bem como Officiaes da Praça, e algumas pessoas de distinção – assentaram as suas peças de campanha em differentes pontos da Villa, e uma em frente do Quartel do Governador (Prefeito) – pozeram sentinellas em vários casas (particularmente a do Prefeito, que foi assaltado em chusma = “fronzed”=) e começaram a saquear. No Domingo pela manhãa, achando-se em plena posse, tocaram a marcha de D. Miguel; na Segunda feira prenderam as famílias dos Officiaes; á noute amarraram os Officiaes juntos, e os arrastaram ao cemitério como gado ao matadouro, e alli inhumanamente fusilaram a todos, menos dous Alferes, a quem perdoram. Aquelles que não morreram logo, foram derrubados á força de coronhadas d’arma, e havendo nelles ainda alguns restos de vida, acabaram de os matar ás pedradas, excepto um, que milagrosamente escapou só com uma ferida, para contar o caso doloroso.
Na Terça feira pela manhãa as viúvas, e órfãos foram removidos para o interior do paiz; e entre as dez da manhãa e a uma da tarde, D. Miguel foi proclamado pelos Soldados como legitimo rei de Portugal, no que o pouco povo restante foi obrigado a tomar parte (incluindo o Consul Espanhol, e eu mesmo), ou sujeitar-me a quinhoar a sorte das victimas da noute precedente.
O Commandante então começou a sua requisição, pedindo dinheiro, e provisões, em nome do Batalhão, de uma maneira inaudita, pedindo artigos de luxo da Europa em tal tempo, e sob pena de morte. 
Tudo foi feito á ponta da baioneta, e todas as famílias, excepto cinco, deixaram a praça. Isto enraiveceu o commandante a ponto de dirigir uma carta ao Prefeito, requerendo-lhe que aquelles que haviam sido soltos da prisão sob a sua caução, ou elle mesmo, aparecessem na Quarta feira ás três horas depois do meio dia em frente do Batalhão pra sofrer a Lei marcial. 
Os sentimentos do Prefeito então mais fáceis de imaginar que descrever. Esta ordem foi todavia revogada, porque o Prefeito garantiu, que elles tinham ido com desígnio de impedir a entrada de forças do interior. Na Quarta feira da tarde muitos Soldados embarcaram a bordo de uma Palaca Sarda com bandeira Brasileira, de que haviam previamente tomado posse; e uma pequena Escuna, antigamente chamada “Evening Edition” de New York, e agora denominada “Maria” pertencente ao Governo Portuguêz. Na Quinta feira de manhãa ouviram-se tiros na vizinhança, o que de tal sorte os assustou, que uniram as suas forças, e levaram ao combate uma peça de campanha municiada. A pequena força atacante foi despersada em poucas horas, o que habilitou os Soldados a fazer o seu embarque final (excepto 29, que se apprisionaram) depois de saquear, e insultar a todos, encravar todas as peças, e lançar ao mar toda a polvora, e balla, que não poderam metter a bórdo. A sua intenção era arrasar a Villa no Sabado, e assassinar os que nella estavam, particularmente o Prefeito, que estava para ser fuzilado publicamente na praça. 
As únicas rasões de não o terem executado mais cedo foi o sangue-frio do Prefeito em atender ás suas requisições.
Os navios deixaram o porto pela volta das oito horas da noute com cousa de dez dias de mantimentos, não sendo possível obter mais naquelle tempo.
No dia seguinte foram vistos dos cumes das montanhas, seguindo derrota para a Ilha do Fogo, provavelmente em busca de viveres, ou de mais propriedade – dalli elles irão aos Estados – Unidos, como muitos dos Soldados me declararam, e bem assim o commandante em chefe, que solicitava cartas d’introducção para pessoas, que elle mehavia de dizer antes de partir; mas a sua confusão foi tal, que elle não teve tempo de me procurar outra vez.
Há uma forte probabilidade de que o commandante seguirá para os Estados-Unidos; pois que o sacco de valor foi principalmente posto a bórdo da Escuna (consistindo em dinheiro, prata e jóias), e nella mui pouca gente de mareação. O seu nome é João Pedro Lopes; foi em outro tempo Capitão em uma das companhias de granadeiros do 8º Regimento, tem couza de cinco pés e meio d’altura, côr morena, tem a vista notavelmente aguda e penetrante, é mais magro que gordo, terá trinta anos de idade, coxêa ao andar, e apresenta uma catadura de assassino, como nunca vi.
Quanto á “Polaca”, essa partiu fazendo tanta água, e com tanta gente a bórdo, que eu julgo impossível que ella possa tomar porto algum sem desastre; e parece-me provável que eles achem a sepultura no Oceano.
Um dos Officiaes perdoados escapou nesta praça: o outro pediu licença para ir a bórdo por não estar bom, com a espeçança de se evadir durante a noute á pressa, infelismente o levaram, bem como alguns outros, contra a sua vontade. O nome deste jovem Official é José Duarte Silva; elle é de uma compleição delicada, mui delgado, e quasi da mesma altura, que o commandante. – Outro tirado do Hospital, e director da Infermaria, chamado José Félix Leitão, é muito robusto, e calvo. – Outro, o Capitão de uma Escuma Franceza chamado Roger, é de altura de cinco pés, e duas ou três polegadas, e de idade de 24 annos.
-- E com estes muitos pretos. Eu espero que todos estes sejam libertados logo que os seus miseráveis companheiros se apanhem. – Esse é o único objecto desta comunicação. A somma para elles roubada, e a propriedade destruída durante cinco dias, calcula-se em mais de cem mil patacas. Por isso nada menos que as vidas das cabeças, poderá nunca satisfazer os prejudicados = William G. Merrill, Cônsul dos Estados – Unidos –

Extraída da Gazeta de New York (New York Gazette, and General advertiser) 
14 de Maio de 1835
Pesquisa de A.Mendes

6 comentários:

  1. Há imprecisão neste relato. Não explica se o capitão que se arvorou em "comandante" dessa força era mesmo o seu comandante originário ou se foi um capitão, provavelmente comandante de uma das companhias que integravam a força. Essa força de 225 homens seria em princípio um batalhão de efectivo reduzido, e o seu comandante seria em princípio um major. Outro aspecto menos claro é essa força destacada ter integrado as famílias dos oficiais e possivelmente de alguns sargentos.
    Em todo o caso, houve casos de violência e selvajaria inaudita durante as Lutas Liberais, que desmentem os nossos brandos costumes.

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  2. O Mendes, certamente, irá reverificar o assunto...

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  3. Caro Amigo Adriano Lima

    Esta "Poeira", quanto a mim, vale pelo ineditismo da "reportagem" tipo CNN da época!

    Como diz : -- Foi um tempo de "selvajaria inaudita"(acrescento: e da maior ladroagem e corrupção) . Talvez, um dos mais trágicos da História de Cabo Verde. Isto a avaliar pelo que me foi dado ler, na descrição pormenorizada do livro :´" Relatório d'alguns accontecimentos notáveis em Cabo Verde" de autoria do Brigadeiro Joaquim Moreira Marinho - Governador de C.V. (da altura)
    É dele este excerto:
    ..." Em Santo Antão apresentando-se hum homem escuro com huma guia de baixa do Corpo de Infanteria da Villa da Praia, e suspeitando eu que a guia era falsa, porque estava muito mal feita em papel impróprio, mandei-o entregar então ao Provedor Luiz António Mello, este mandou-o prender, e vei-me dizer aquelle homem era hum chefe de salteadores, que no tempo da fome tinha morto e roubado todos os gados, e que só elle roubára e matára sessenta e quatro bois, que tinha assassinado gente, principalmente na ilha de Santa Luzia"... (pergunto: Seria a Ilha habitada?)

    O relatório histórico pode ser lido em : Relatório d'alguns accontecimentos notáveis em cabo verde - books.google.pt/books

    Mantenha.

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  4. Sim, amigo "amendes", vale pelo ineditismo mas também pela sua muito provável veracidade.
    Acontece que durante a guerra civil (entre Liberais e Absolutistas) os corpos militares (unidades) tomaram partido por ambos os lados, e daí obviamente a guerra civil. É certo que a motivação ideológica é que determinou o posicionamento das diferentes forças militares, ou seja, os regimentos. Sucede porém que em vários casos houve unidades que mudaram de campo, ou por mudança de convicção ou pelo pendor da vitória. O RI 15, por exemplo, lutou sempre pela causa Liberal, mas sempre que a vitória pendeu temporariamente para o lado dos Absolutistas, a unidade foi extinta coercivamente, mas voltando a ser reactivada com o sucesso dos Liberais. Isso aconteceu com várias unidades e algumas houve que mudaram de campo apenas em função das circunstâncias, não propriamente por convicção política.
    Ora, este intróito é para encontrar alguma explicação para o triste episódio aquilo relatado. É natural que essa força em si fosse partidária do Liberalismo mas que integrasse militares da linha contrária, como deve ter sido o caso desse capitão. E então presumo que ele deve ter aliciado as praças e os cabos para a causa Absolutista e aproveitou o momento propício para dar o golpe e tomar o comando da força, liquidando os seus principais quadros, cujo alinhamento político certamente conhecia. Não se sabe se o comandante de batalhão (em princípio major) terá estado entre os oficiais assassinados. Mas pode também ter acontecido que o comandante efectivo tenha ficado para embarcar com o segundo contingente que iria completar o batalhão. Assim, é possível que o capitão revoltoso fosse o militar mais graduado do primeiro contingente embarcado.
    Naturalmente que se questiona sobre as verdadeiras motivações desse oficial, já que a sua conduta é mais a de um facínora, assassino e ladrão, como é aliás bem caracterizado no relato, do que a de um oficial que age por convicções ideológicas. Durante essa guerra civil não foram poucos os casos de retaliação que se traduziram em julgamentos sumários, fuzilamentos e enforcamentos, com total desrespeito pelos direitos humanos, sobretudo do lado dos Absolutistas, mas não só. Por exemplo, o general Saldanha, liberal convicto, atacou o Forte de Almeida, reduto difícil dos Absolutistas, e a acção militar resultou numa grande mortandade entre os sitiados.
    Ou seja, em todas as guerras o descontrolo e a violência tendem a manifestar-se, mas o caso deste capitão é completamente diferente, está fora de qualquer padrão. É uma perfeita aberração humana.

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  5. Agradeço o seu elucidativo comentário, uma excelente lição de História... Como é bom aprender com quem sabe .

    Grato.

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  6. Obrigado, amendes, é sempre um prazer comentar os posts importantes que resultam da sua colaboração, pois a pesquisa é consigo.
    Quanto a esse maldito capitão, o seu destino justo só podia ser a forca, não o fuzilamento como manda a praxe militar para os casos de execução marcial. A forca é para criminosos comuns, para os assassinos e ladrões, enquanto o fuzilamento é um direito que se concede ao condenado militar em tempo de guerra.
    Esse capitão devia ser o diabo em figura de gente.
    Mas seria bom que outros comentassem este acontecimento inédito que teve como cenário as nossas ilhas.

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