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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

[7667] - DO CENTRALISMO DEMOCRÁTICO E DOS ISMOS


Há largos anos que li, em Coimbra, da biblioteca dispersa pelos “repúblicos” por medida de segurança anti-PIDE, da Real República os 1.000-y-Onarius, O Contrato Social, de Jean Jacques Rousseau, tendo-me passado despercebido que o filósofo, que conhecemos do liceu ao estudar os precursores da Revolução Francesa, talvez fosse o primeiro a defender a teoria do Centralismo Democrático, claro que sob outras vestes. Partindo do princípio de que a autoridade do Estado idealizado por ele emana da “vontade geral”, de “todo o povo”, argumenta – de resto como F. Engels, na sua célebre “Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra” -, que mais nenhuma manifestação de liberdade individual deve ser tolerada posteriormente ao acto constitucional fundador.
Rousseau nunca escondeu preferir o campo à cidade, a agricultura ao comércio, a simplicidade e modéstia ao luxo, a estabilidade dos costumes às invenções, a igualdade dos cidadãos numa economia simples, à desigualdade numa complexa, o tradicionalismo ao progresso. Nesse sentido conservador e rural, não foi, ao contrário do que nos ensinaram no liceu, o precursor da democracia liberal, mas o intelectual da esquerda totalitária, esquerda, por vezes, autodeclarada, revolucionária.
Na minha juventude - minha e de alguns amigos que viraram políticos-, estivemos encantados com uma ideia inviável – o comunismo – de ideais nobres, mobilizadores, que, afinal, nunca se praticaram, mas empolgaram quem os conhecia através da bem urdida propaganda política e habilidade de dissimulação ideológica; admirámos homens que julgávamos íntegros e idealistas, em verdade sinistros, e, mais tarde, fechámos os ouvidos, algumas vezes, para não ouvir falar num número infinito de crimes em que não acreditávamos que pudessem ter sido praticados pelos nossos ídolos políticos. E isso aconteceu por termos vivido num regime sem liberdade as mais elementares, opressivo e policial que também navegava na mentira, que conhecíamos e nos impedia de acreditar no que nos contavam, até por não nos ser permitido visitar os países comunistas nem os outros onde existia a vera democracia, liberdade de expressão do pensamento e de informação. Sabíamos, por viver nele, que o capitalismo não proporcionava a igualdade, e julgávamos que o comunismo o fazia, quando, com efeito, o que fazia era repartir a pobreza. As soluções colectivistas da experiência soviética não podem ser repetidas porque, ao igualarem por baixo, mataram a liberdade, e esta morte liquidou a igualdade tentada.
Custou-nos a entender isso, esquivando-nos, durante anos, a acreditar no logro, inventando até desculpas para o comunismo, argumentando que fracassou por não ser o verdadeiro comunismo e por os seus intérpretes serem ruins. Afinal de contas, não havia outro, não há nem parece haver outro. 
Distribuir sem lucro está fora do sistema capitalista e neoliberal. E distribuir com lucro deixa de fora milhões, mesmo biliões de famintos. O mercado, de que tanto se fala nos nossos dias, prefere inutilizar os excedentes a distribuí-los. Os governantes actuais, neoliberais, tudo fazem para não irritar o mercado (receando o seu nervosismo, que significa tão-somente estar ávido de mais lucros). Damo-nos conta, pois, de que a riqueza concentra-se em cada vez menos mãos e o salário distribui-se por cada vez menos trabalhadores, o que significa que a miséria e a fome se distribuem por cada vez mais gente e bocas. A fome, a exclusão social e o desemprego aumentam exponencialmente com o aumento global da chamada riqueza das nações, e não o contrário, como nos garantiram e continuam a querer enganar-nos.
Dessa minha vivência, conhecia de ginjeira o centralismo português que, tendencionalmente entravava as iniciativas das administrações regional e locais, as tentativas de descentralização, tendo por consequência o avolumar do burocratismo. Somente mais tarde, já em Cabo Verde, na pós-independência, é que convivi com o centralismo a que se acrescentou o qualificativo democrático, e a persistência da imagem do poder político e social condensado no Partido único PAIGC/CV, e, mais tarde, no MpD, quando este teve maioria qualificada - tentação para a tirania da maioria -, centralismo com tendência a caminhar a par com uma degradação progressiva dos comportamentos e da mentalidade dos quadros, com tendência geral para se subtraírem ao cumprimento de normas regulamentares e éticas e a conviver, sem rebates de consciência, com a corrupção.
Embora tenhamos passado a viver em multipartidarismo, para alguns militantes e governantes no poder, o antigo partido único é, segundo dizemos em medicina, como um membro fantasma, um braço ou uma perna desaparecido, mas que o amputado continua a sentir como se ainda se encontrasse presente. Fenómenos de natureza ideológica podem estar em actividade em sectores da vida política, administrativa ou social sem que se esteja numa sociedade de partido único. Estamos, em Cabo Verde, nesta situação, o que tem dificultado o diálogo e as mudanças.
Como resolver o imbróglio e a actual crise global? Em primeiro lugar, deixar de salivar os lugares comuns do centralismo democrático e abrir o espírito a influências novas dialogantes. Em seguida, isso no contexto geral da actual crise global, tentar encontrar uma maneira de harmonizar o sistema que sabe produzir com o que sabe distribuir, que se invista na criação da sociedade solidária, da solidariedade, inventada pelo socialismo, em substituição da fraternidade, de origem liberal, da Revolução Francesa e da Comuna de Paris. Não será fácil, mas há que tentar, porque a pobreza e o desespero levarão os povos a revoltarem-se, como aconteceu na Revolução Francesa; havendo revolução, ela não se limitará a um só país, não poupando os que nos vêm explorando, incluindo os oligarcas partidários ensopados em negócios pouco límpidos. 
Voltarei ao assunto com mais vagar. Não escrevi tudo quanto desejava; fá-lo-ei às golfadas para não cansar os que perderam o hábito salutar da leitura.

Parede, Novembro de 2013                                                            Arsénio Fermino de Pina
                                                                                             (Pediatra e sócio honorário da ASdeco)

PS – Outubro de 2014
Este artigo, datado de Novembro de 2013, publicado num dos nossos jornais, corrobora o que escreveu o professor João Carlos Espada em O Público, de 6 de Outubro 2014. Por ser intelectual que cito com certa frequência, vou respigar parte do seu artigo, em apoio do meu.
Julgo que esse caminho de limitação da simples liberdade de consciência, em nome de uma alegada ´verdadeira liberdade´ foi tragicamente simbolizada por Jean-Jacques Rousseau – e pelo seu equívoco conceito de ´vontade geral´ que deve ´obrigar os indivíduos a serem livres´. Foi o equívoco de Rousseau que abriu caminho a um entendimento de democracia como vontade colectiva que pode (quando não deve) ter precedência sobre a liberdade de consciência das pessoas. É isso que explica que as ditaduras comunistas tenham sido autodesignadas por democracias populares. Também Mussolini, num célebre artigo na Enciclopédia Italiana, argumentou que o fascismo era mais democrático do que as oligarquias capitalistas.
Na Inglaterra, por exemplo, a democracia emergiu da gradual expansão do sufrágio em regimes que não eram absolutos e já eram limitados – pela Lei e o Parlamento (ainda que este fosse baseado em sufrágio não universal). A Magna Carta de 1215 é um símbolo destes princípios. Este entendimento de democracia como governo limitado pela lei que presta contas ao Parlamento – dominante hoje – resulta de critério das democracias liberais [isto faz-me recordar o longo e incansável combate jornalístico do amigo Casimiro de Pina] sobre os totalitarismos nacional-socialista e comunista do século XX. Supõe que a esfera política e estatal é ela própria limitada. Para além dela existem múltiplas associações, livres e privadas, da sociedade civil – que não podem nem devem ser comandadas pelo Estado, mesmo democrático.
Este conceito de democracia não garante um bom governo. Apenas garante que os maus governos poderão ser afastados sem violência. Tal como o conceito de liberdade de consciência não garante que as escolhas, dela decorrentes, sejam boas. Apenas garante que as más escolhas não poderão ser impostas a todos. A igualdade e a democracia são, por este motivo, imperfeitas. Mas, como recordou Churchill, a liberdade e a democracia são de longe preferíveis às alternativas.

2 comentários:

  1. Conheço esta foto de um lado qualquer...

    Braça com click,
    Djack

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  2. E eu passei a conhecer o autor, irmão de dois ex-condiscipulos.
    Se não lhe solicitam é porque escreve essas coisas destemidas.
    Estamos juntos pela boa causa.
    Força, Companheiro !!!

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