Do “Folclore
Caboverdeano”, de Pedro Monteiro Cardoso
Entre mãos o Folclore
Caboverdeano, de Pedro Cardoso, numa edição de 1983 da Associação Solidariedade Caboverdiana de Paris, que me foi enviado pelo amigo e conterrâneo Luiz Silva,
por lhe ter falado no nosso poeta foguense. A primeira edição desta obra tem a
data de 1933, em vida do autor.
Conheci a poesia do sagaz e acutilante polemista
de leitura de alguns dos seus poemas, de referências ao seu jornal, O Manduco, de outro foguense, já
falecido, o amigo Danilo Avelino Henriques, por volta da década de
cinquenta/sessenta, e através do meu pai no livro O Processo de Hermano de Pina, subsídios para a história da fome em
Cabo Verde - que me encarreguei de publicar ao encontrá-lo nas suas
papeladas após a morte – onde cita o amigo que definia o administrador colonial
da Ilha do Fogo, Dr. Gouveia e Melo, mais conhecido na ilha sob o nome de miliciano, de grande Tartufo.
Apraz-me realçar o valor desta obra de Pedro
Cardoso, mormente para a nova geração de patrícios que a desconhece, e mesmo
para os menos jovens, pois eu próprio, embora sabendo da sua existência, ainda
não a tinha lido. Refiro-me, particularmente à edição da Associação Solidariedade Caboverdiana de Paris, pelo interesse da
bem documentada introdução do Luiz Silva e do prefácio do escritor português
Alfredo Margarido, peças fundamentais para a compreensão da época e contexto em
que o poeta, polemista e professor primário foguense viveu. A introdução e
prefácio dão-nos um manancial de informações históricas sobre a emigração
cabo-verdiana para os EUA, a África (desconhecia que, já em 1866, se enviaram
para a Ilha do Príncipe 1.000 cabo-verdianos, tendo a grande maioria morrido de
paludismo e doença do sono) e Europa, sobre a evolução do ensino em Cabo Verde
desde a Monarquia, passando pela 1ª República e pelo chamado Estado Novo, a
história da introdução da tipografia em Cabo Verde (1842) e noutras colónias, a
acção dos chamados nativistas (nacionalistas de boa têmpera e cepa), a criação
de sindicatos e de organizações associativas (o primeiro sindicato agrícola
criado em S. Nicolau em 1917), etc.
Luiz Silva não me enviou o texto de Pedro Cardoso,
por só dispor de um único exemplar e recear perdê-lo. Lembrei-me, então, do bom
amigo Daniel Nunes, badio de Santa Catarina, com a sua monumental biblioteca de
livros versando assuntos africanos, quarenta e tal mil volumes, alguns de data
recuadíssima, além de máscaras, estatuetas de vários tipos, peças arqueológicas
únicas e pinturas que transformaram a sua residência, construída sob gestão
directa, num autêntico museu. Foi aí que fui encontrar o Folclore Caboverdeano de Pedro Cardoso, e ainda beneficiei de um breve
briefing do Daniel sobre o seu
relacionamento com Alfredo Margarido e das peripécias da sua vida até se
radicar em Paris. O jornal Público de
28 de Dezembro incluiu uma longa entrevista de duas páginas com Daniel Nunes e
a SIC prometeu transmitir um programa sobre a mesma biblioteca.
Estas breves linhas pretendem tão-somente chamar a
atenção para a necessidade urgente de reedição desta obra com a introdução e
prefácio da edição da Associação
Solidariedade Caboverdiana de Paris. O texto de Pedro Cardoso é
interpretado e valorizado pela citada introdução e prefácio, pela simples razão
de Luiz Silva ter sido emigrante que se converteu em sociólogo e conhecer, por
isso, profundamente os problemas da emigração e da sua terá natal, um lutador
perseverante, de longa data, em defesa dos direitos dos emigrantes,
infelizmente muito mal escutado pelo poder; Alfredo Margarido, escritor
português, conhecedor da história, literatura e sociedade cabo-verdianas, cuja
integridade intelectual, cultura, competência e motivações políticas o forçaram
a abandonar Portugal e a radicar-se em Paris. Amigo íntimo do Luiz Silva, que o
guiou na sua qualificação universitária, conheci-o em S. Vicente, aquando de
uma homenagem ao Mestre Aurélio Gonçalves, João Cleofas Martins e Sérgio Frusoni,
por altura de um dos seus aniversários, pela Academia de Estudos de Ciências Comparadas (AECCOM), fundada pelo
professor João Manuel Varela, com colaboração minha e até participação na
revista Anais da Academia.
Deixo à curiosidade de eventuais leitores a obra
de Pedro Cardoso, a primeira, que se conhece abordando a etnografia de Cabo
Verde. Professor primário formado no famoso Seminário-liceu
de S. Nicolau, com uma formação sólida em Português, Latim e noutras
matérias que lhe permitiu intervir activa e corajosamente em defesa do seu país
e povo, talvez o primeiro poeta de língua portuguesa a citar Karl Marx num dos
seus poemas. Um exemplo para a geração actual um tanto amolecida e amedrontada
pelas sinuosidades da governação nacional. Viveu no tempo em que se lia e se
escrevia, ciente de que a escrita é sempre para os outros e uma manifestação de
intervenção cívica, ao contrário da actualidade em que o ideal é a televisão,
as redes sociais, o SMS. Hoje habita-se o território do lugar-comum e alimenta-se,
acriticamente para não cansar a cabeça, de doses fartas de telenovelas
medíocres e das “reflexões“ de comentadores políticos, económicos,
futebolísticos e de outros produtores do pensamento único. A figura que domina
a cena social, como bem diz o poeta e escritor José Fanha, é a do analfabeto
secundário, que aprendeu a ler e a escrever mas diz, com frequência, não dispor
de tempo para ler por ter coisas mais importantes para fazer.
A variedade de temas versados no Folclore de Pedro Cardoso – história de
Cabo Verde, variantes do crioulo, noções elementares de gramática, glossário,
etc, na 1ª Parte; cancioneiro, crioulo de Santiago, batuque, cimbó, finaçon,
etc. na 2ª Parte; Apêndice com letras de mornas; In-memorium: António Cortez,
Eugénio Tavares, etc. – encanta qualquer leitor e até intriga pelo manancial de
conhecimentos do autor numa época tão recuada e em meio acanhado.
Bom seria que a nossa embaixada em Paris,
redimindo-se de pecados antigos e menos antigos por omissão, proporcionasse um
patrocínio significativo para a reedição desta obra.
Lisboa, Janeiro de 2015 Arsénio Fermino de Pina
(Pediatra e sócio honorário da Adeco)
Oxalá ouçam a tua sugestão, Arsénio, e reeditem a obra de Pedro Cardoso. Nunca a li mas muito gostaria de a ler, sobretudo depois de sentir o entusiasmo com que a analisas.
ResponderEliminarRealmente, os tempos actuais, como bem dizes, são de um triste e censurável retrocesso em hábitos de leitura. Longe vão os tempos em que os actuais meios de comunicação não disputavam a primazia do nosso tempo. Eu próprio sinto esse efeito, embora se reconheça que a net nos proporciona um acesso sem precedentes à consulta de dados, poupando-nos imenso tempo de procura nas bibliotecas. Mas o panorama mais triste é o dessa indigência de que falas, esse predomínio de gente quase analfabeta que pontifica no jornalismo televisivo e nos comentários do óbvio. Estou numa altura em que sinto que poucos colunistas justificam que perca o meu tempo a ler o que escrevem. Tirando os antigos, os mais velhos, o que vemos é um simples exercício de falsas aparências disfarçadas, e nem sempre disfarçáveis, com recursos alheios tomados de empréstimo. O pior é a sensação de que ninguém arrisca ser ele próprio, ter uma opinião livre e independente, como se houvesse receio de perder o estipêndio ou a oportunidade do tacho oferecido pelos que momentaneamente estão na mó de cima.
Mais um texto do grande Mestre agora com esta extraordinária análise e revisão da obra de Pedro Cardoso. Saravá
ResponderEliminarAssíduo leitor deste blog onde me encontro "em casa" bem como no "Praia de Bote", procuro dar a minha opinião sempre que possível, muitas vezes evitando ser o primeiro para que não seja chamado de "fominha". Todavia confesso que não me sinto à vontade em criticas literárias; quando me delicio fico pasmado e foi o caso desta obra.
ResponderEliminarPode não ser correcto de passar sem "flà mantenha" (acabo de apanhar do Luiz...) mas ousar falar de Mestres apresentado por bodonas não é comigo. Sinto-me mais à vontade noutros géneros. Cada um se desenrasca como pode.
Relativamente ao poeta foguense tenho a dizer que o descobri há anos, depois do exílio, graças à gentileza do amigo Luiz Silva, editot. Amante de poesia, passei momentos deliciosos, tendo, regularmente, revisto até que... perdi a obra que se encontra algures, mal classificado.
Pedem uma segunda edição do livro. Se isso suceder comprarei dois ou três volumes para brindar amigos franceses, luso falantes, que desconhecem a maior parte da nossa literatura.