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quarta-feira, 1 de abril de 2015

[7952] - D'RIBA D'ÁGA DE MAR...(2)

...O MAR E A AVENTURA NA MEMÓRIA E NA IDENTIDADE DO POVO CABO-VERDIANO...

II CAPÍTULO

Navio Madalan


Ao passar da ficção para a realidade trágica do luto que o mar lançou no coração de muitos cabo-verdianos, não me coíbo de relatar um drama que  toca o meu clã familiar. O meu bisavô paterno, um conhecido comerciante da ilha de S. Vicente, que chegou a presidente da câmara do seu concelho, era dono e armador do veleiro “Sirene”, um dos que faziam regularmente a carreira para a América do Norte. Naquele tempo, os navios cabo-verdianos exploravam rotas comerciais para a América do Norte que se regulavam pelas estações do ano, evitando sempre a inclemência do Inverno. Os veleiros transportavam para a América passageiros e produtos da terra e regressavam com mercadorias de fabrico americano. No intervalo entre essas viagens, demandavam os países da costa africana, transportando carga e passageiros, sendo o sal um dos produtos de Cabo Verde mais transaccionados com a África Continental. Numa viagem por volta de 1930, o veleiro “Sirena” desapareceu a caminho da América do Norte, ou no regresso, não sei ao certo, sem deixar rasto e sem que se conheçam as circunstâncias precisas do acidente marítimo, visto que naquele tempo não havia as actuais tecnologias e meios de socorro náutico. Comandava o navio José Gomes de Pina, genro do meu bisavô, que pereceu no naufrágio, assim como toda a tripulação e os passageiros que provavelmente nele seguiam, como era usual à época. Outro caso idêntico a este foi o do veleiro “Matilde”, objecto de um texto teatral, como foi atrás referido.     Em toda a minha infância e adolescência em Cabo Verde, soube de notícias a comunicar o óbito de marinheiros embarcados em navios estrangeiros. No mar do arquipélago naufragavam ou desapareciam de onde em onde veleiros de cabotagem, como um que aconteceu na costa da ilha S. Vicente no regresso de uma viagem a S. Antão, com muitas perdas humanas, apesar do esforço heróico de um cidadão que destemidamente resgatou vidas ao mar e acabou também por sucumbir de exaustão no fim da sua extraordinária empresa.
    Creio que episódios como estes acabados de referir marcaram pelo menos os últimos dois séculos da vida deste povo. De facto, a morte espreitou ou acolheu o marinheiro crioulo vezes sem conta no seu seio, seja na cabotagem entre as ilhas, seja, sobretudo, no mar largo, na imensidão infinita da sua superfície líquida, onde buscou afincadamente os meios de sobrevivência que a natureza não lhe garantia na terra agreste das suas ilhas. Sim, sobrevivência é a palavra certa para designar a única motivação que levou o homem de Cabo Verde a tornar-se marinheiro, por ofício ou por mera casualidade. Povo demograficamente pouco expressivo, é sem dúvida assinalável a taxa da sua representatividade nas equipagens da marinha mercante de muitas e variadas bandeiras que sulcaram os mares fora no passado.  
    É esta memória colectiva, com o seu ror de infortúnios a ensombrar a luta denodada pela sobrevivência, que consubstancia aquilo a que poderíamos chamar a “História Trágico-Marítima” de Cabo Verde, numa apropriação algo abusiva dessa expressão literária. Mas não poderá Cabo Verde reclamar o seu quinhão na “HISTÓRIA TRÁGICO MARÍTIMA”? É forçoso acreditar, com juízos fundamentados, que, a partir da expansão marítima portuguesa, o povo ilhéu, vivendo rodeado de mar e naquela que era uma importante placa giratória das rotas transatlânticas, não podia ficar imune ao chamamento do mar e às exigências da navegação do império. Uma pesquisa exaustiva decerto que consolidará definitivamente a verdade histórica sobre o regular engajamento de marinheiros oriundos das ilhas em navios portugueses que escalavam o arquipélago nas antigas rotas para a Índia, a África e o Brasil. Com a frequência com que à época ocorriam óbitos e doenças a bordo dos navios nessas longas viagens transatlânticas, o homem das ilhas africanas seria um recurso a jeito para o reforço das tripulações exaustas e desfalcadas, após dias e dias a navegar.  
    Alguma coisa se pode desde já adiantar sobre o assunto, embora este trabalho não tenha qualquer pretensão do ponto de vista historiográfico, como já bem se frisou. Um trabalho de pesquisa com vista a uma Tese de Doutoramento em História (1)  a propósito do julgamento de navios negreiros no Brasil entre 1812 e 1863, refere o seguinte sobre a origem das tripulações:
“Se nos restringirmos ao universo da amostragem, a menor diversidade de origem nacional não significa que automaticamente estava criada uma unidade cultural maior, já que as práticas culturais são informadas por muitos outros elementos. A maior parte dos tripulantes era de origem portuguesa (pouco mais de 53% do total), seguida dos africanos (pouco mais de 24%). Exceptuando os sete cabo-verdianos da amostra e outros três homens livres africanos e negros, os demais africanos mencionados eram ou haviam sido escravos, o que nos remete a outros aspectos importantes na formação da cultura marítima do tráfico negreiro: a presença marcante das culturas africanas e escravas a bordo e a diversidade social existente nas equipagens. Os tripulantes africanos, quase sempre na condição de marinheiros – ainda que por vezes em tarefas especializadas – estavam submetidos ao domínio dos oficiais, como de resto todos os marinheiros. Entretanto, sua situação poderia ser de discriminação e eventualmente suas falhas no trabalho seriam punidas de forma mais rigorosa.”    
    Outro registo curioso refere o embarque de “70 negros” de Santiago nas naus da armada de Afonso de Albuquerque que regressava a Lisboa.
     Deste modo, o cabo-verdiano terá justa razão para crer que a sua iniciação nas lides do alto mar remonta às primeiras viagens transatlânticas que escalavam as ilhas, acabando, por uma circunstância ou por outra, por embarcar nas naus e viver com os seus colegas reinóis o mesmo calvário marítimo que alimenta o mito literário que subjaz à “História Trágico-Marítima”. A sedução do mar aproxima o português do cabo-verdiano. O meio físico e a história em ambos os casos igualaram os dois povos na mesma predestinação, imbricados com o mar e obrigados a sofrer o seu assédio de sedução e fascínio.
    A epopeia marítima portuguesa foi gizada no contexto de uma delineada estratégia de conquista, expansão e comércio, que à luz dos tempos actuais tanto pode, para o nacionalista exacerbado, adoçar-se em ufania épica, como, para o historiador lúcido e desapaixonado, enublar-se num olhar mais crítico e reprovador. Na sua busca insaciável de riquezas e honrarias, a empresa expansionista não evitou cometer excessos e atrocidades, reverso da medalha das grandezas e feitos de então, a que Hernâni Cidade chamou “as sombras do quadro grandioso da Expansão Ultramarina”. Daí que uma diferente perspectiva ficcional remeta a História Trágico-Marítima para uma outra exegese literária, no sentido de uma reavaliação histórica que permita resgatar o subconsciente nacional (nas palavras de Eduardo Lourenço) e comprometê-lo com outra visão do futuro, como fez Pessoa. Seja como for, deixando de lado as interpretações políticas, o que agora se pretende relevar é a vocação marítima do povo português e a sua dimensão diaspórica, com a sua inevitável intersecção na vida de outros povos, o que, no caso cabo-verdiano em particular, ajuda a compreender o despertar da sua veia para a vida marítima e a sua dispersão por todas as partes do mundo. Afinal de contas, seguiu as pisadas do seu irmão português.
    Mas, de um outro ângulo, se o povo cabo-verdiano nasceu para o mar nas malhas em que o império teceu o seu destino, historicamente seria um paradoxo que ele partilhasse de uma exaltação apologética e patriótica associada à aura das Descobertas. Quase certo que naquele tempo o marinheiro cabo-verdiano engajado nas naus foi mais mártir que herói, mais besta de trabalho que fruidor de saque ou lucro de comércio de especiarias. Mas como a história é inapagável, sobre a experiência em apreço deve reflectir-se com distanciamento, valorizando o que é de valorizar e não assumindo atitudes preconceituosas, porque só assim se faz luz sobre as razões psico-ideológicas justificativas de certas aptidões, vocações, sentimentos e comportamentos que formatam a natureza do homem das ilhas. Há quem opine que as origens do fado remontam ao tempo das Descobertas, e, a ser assim, colhe então interrogar-se sobre esta estranha similitude estrutural entre a morna e o fado. Desconhece-se a origem de qualquer dos géneros musicais, mas quando alguém opinou que a morna deriva do fado, o escritor Manuel Ferreira contrapôs com o argumento de ela ser mais antiga que o fado. O que é verdade é que tanto o fado como a morna vão ao fundo da alma para soltar a dor do coração sofrido ou deixar escoar tristemente a saudade. Ambos são expressão de um lamento que bem pode ter nascido na solidão do convés de um navio naquelas noites olorosas em que a lua espalha o seu brilho de prata sobre a superfície quieta do mar.

(1) RODRIGUES, Jaime, “Cultura marítima: marinheiros e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (sécs. XVIII E XIX)”, Revista Brasileira de História.



3 comentários:

  1. Adriano bate numa tecla que nos é bastante sensível e da qual não podemos ficar alheio pois muitos de nós temos alguma ligação com acontecimentos ligados às epopeias maritimas. Por a cada vez me vir historias que vivi ou ouvi vou, à laia de comentário, cito um caso que sucedeu em nos princípios dos anos 40 do século passado e que guardou o mistério durante muitos anos
    Vinha de Santo Antão, mais precisamente , do Penedo da Ribeira de Janela, o veleiro "Fátima" propriedade de Luís Rocha comerciante na Ribeira Bote. O percurso era feito regularmente com saída à tardinha e chegada de madrugada mas nessa vez ninguém chegou e ninguém sabia do destino do barquinho. Acalentou-se a esperança do mesmo estar perdido, coisa impossível com bom tempo mesmo navegando sem aparelhos como habitualmente no Canal. Escusado contar a dor que se sentia pela perda de tantas vidas.
    Pelo que me toca senti imenso o desaparecimento de uma prima (afastada) que deixou os pais na Fajã para "tratar a irmã mais velha que estava bastante doente" a qual morreria semanas depois. Além das duas irmãs foram os pais que nunca conheceram o fim do veleiro.
    E quando sondava o Porto para a construção do Cais Acostável no Porto Grande o escafandrista (francês) desvendou o mistério informando que não seria difícil a sua recuperação, o que não foi feita... por superstição.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Quanto ao texto, a nota máxima, como de costume, sobretudo com este enredo marítimo de que todos aqui gostamos. Quanto à foto, o velho "Madalan" por esta altura ainda se chamava "Illyria". Ele foi um entre muitos que acabaram de maneira trágica. Aqui deixo a parte final de um longo texto escrito por um amigo nosso sobre este veleiro que ainda é recordado nas ilhas verdianas:

    "(...) Bem mais tristes dias estavam reservados ao "Madalan". Pelo menos desde 1957 era seu proprietário o maense António Bento . Foi pois sob sua posse que cerca de Março de 1959 garrou na Praia e foi chocar contra os recifes do ilhéu de Santa Maria, onde ficou de início adornado num ângulo de cerca de 45 graus. O navio/motor 'Ana Mafalda', da Sociedade Geral, de Lisboa, que ali se encontrava, ainda lhe passou um cabo para o rebocar mas por este se ter partido a operação redundou num fracasso . Em Abril, o rebocador 'Praia Grande' fez nova tentativa que de igual modo não resultou e o barco teve de ser abandonado . Terminava assim a carreira deste veleiro que no entanto conquistou lugar de honra na história da navegação cabo-verdiana. Os desígnios do destino fizeram com que se salvasse do largo Atlântico, cujos perigos afrontou tantas vezes, para acabar por perecer de modo inglório à vista de terra a que pertencia."

    Braça trágico-marítima com água a entrar no porão,
    Djack

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