MIGUEL DA CONCEIÇÃO MOTA CARMO
O Homem, o Militar e o Administrador
CAPÍTULO II
A acção do Administrador Mota Carmo
É durante as suas
funções de administrador que Mota Carmo, com o posto de capitão, deixou o seu
nome escrito nas pedras da calçada do Mindelo, para o bem e para o mal,
consoante a opinião que cada um faça acerca do seu desempenho. Há uma
subjectividade sempre inerente a qualquer juízo sobre quem exerce funções
públicas. Depende da perspectiva e do estrato social a que se pertence, e isto
é tanto mais relevável num tempo em que não havia liberdades cívicas e o poder
era dum modo geral exercido de forma autoritária. Os de estrato social mais
alto, isto é, os privilegiados, por certo que tenderiam a aceitar ou a pactuar
mais com uma autoridade firme, porque garante dos seus interesses de classe. Os
deserdados da fortuna, isto é, os pobres, naturalmente que a sua desdita os
propiciaria mais para a transgressão, quer pela prática de furtos ou roubos,
quer por atitudes socialmente reprováveis, como a embriaguez no meio público e
a ocorrência de desacatos e brigas entre gente do povo, comuns na nossa terra.
Por conseguinte, o povo anónimo poderia ser o mais queixoso do eventual poder
autoritário do capitão administrador, que em muitos casos acredito consistia
num misto de disciplina militar e de gestão de actos públicos. Sempre ouvi
contar que o Mota Carmo tomou medidas severas para pôr termo às vendas de rua e
instaurar hábitos de pendor europeu na cidade, tendo-o conseguido com algum
sucesso, pelo menos nas áreas mais urbanas, a chamada “morada”. Ora, quem se
sentiria mais prejudicado com a imposição de medidas administrativas deste
género, particularmente exigentes? O povo anónimo ou as classes mais
privilegiadas? Não é fácil a resposta, porque teremos ocasião de concluir que a
acção de Mota Carmo encontrou maior resistência entre as classes sociais
privilegiadas que entre o povo anónimo, no tocante a certos aspectos da sua
actividade.
Uma medida que ele
tomou e alimentou o anedotário local foi a proibição do uso de saia curta às
mulheres, querendo com isso impor uma suposta moralização dos costumes,
conforme a mentalidade conservadora de raiz católica, mas que normalmente não
consegue iludir a mais pura hipocrisia. É que muitas vezes são os próprios
defensores da moral pública os seus primeiros transgressores. Pode ser
constrangedor dizê-lo perante os seus descendentes, mas o facto de o Mota Carmo
ter gerado filhos em S. Vicente que não registou funciona em seu desabono e
desmente a sinceridade dos seus propósitos de instigador de moral pública.
Sobre esta questão das saias curtas, resta saber se a medida seria particularmente
mais gravosa para as “menininhas novas” do para as mulheres de um modo geral. É
que, por ironia, consta que essa medida causou viva indignação entre as
próprias senhoras da alta sociedade e uma delas reagiu de tal modo veemente que
pode ter contribuído para o enfraquecimento do prestígio que o Administrador
teria até certa altura alcançado com o sucesso de algumas das suas realizações.
E especula-se também que tal facto apressou a sua substituição no cargo. Mas
sobre esta última possibilidade é difícil fazer um juízo rigoroso, já que ele
exerceu o cargo durante 6 anos, tempo mais que suficiente para justificar a sua
substituição à luz das normas administrativas em vigor no Exército. Com efeito,
Mota Carmo era um oficial do Exército e existem tempos limites estabelecidos
para o exercício de funções fora da instituição militar. E seis anos
constituíram tempo bem longo.
Um aspecto da cidade do Mindelo no tempo da
administração de Mota Carmo
Afora o que pode
sugerir alguma faceta menos favorável à sua pessoa, é do domínio geral que a
administração de Mota Carmo revestiu aspectos muito positivos e que a ilha e a
cidade beneficiaram bastante com o seu desempenho. A demonstrar perfeitamente o
seu perfil autoritário e decidido, reflexo da sua condição militar, um tio meu
contou-me o seguinte caso. Certa vez, um grupo de marinheiros de um navio de
guerra português fundeado no porto assistia a um espectáculo de revista teatral
nas instalações do Clube Castilho. Espectáculos desse género eram promovidos
por ele para angariar meios financeiros para as obras de assistência a que
meteu ombros. Ora, a certa altura, alguns desses marinheiros começaram a
portar-se de uma forma tão inconveniente que o Mota Carmo saiu do seu lugar e
dirigiu-se-lhes pessoalmente nestes termos: “Sou Mota Carmo, Capitão do
Exército e Administrador do Concelho. Vocês estão a portar-se de forma indigna.
Retirem-se imediatamente!” Os marinheiros, sem esboçar o mínimo gesto, com o rabo
entre as pernas, abandonaram o lugar. Esse mesmo tio também me conta que, em
conversa com um grupo de amigos sobre a actual situação da cidade do Mindelo,
há quem de vez quando exclame: “Isto está a precisar é de um Mota Carmo!” Não
será então despropositado considerar que o seu nome paira ainda no domínio da
lenda.
Poucos dados concretos
e completos consegui obter sobre a acção de Mota Carmo como administrador,
porque nada disso consta, como é óbvio, do seu processo militar. Mas é do
conhecimento geral que ele desenvolveu uma intensa actividade virada para a
higiene e o saneamento, a ordem pública e a promoção da assistência aos
necessitados e amparo dos órfãos, além de inúmeras obras públicas. Mas o que é
mais emblemático é ele ter-se empenhado com todas as suas forças e energias,
físicas mas também morais, para a construção de uma importante infra-estrutura
social no âmbito da Associação de Caridade de Cabo Verde, que ele impulsionou
conferindo-lhe uma alta prioridade na agenda da sua actividade. Mota Carmo deu
uma entrevista ao jornal “Notícias de Cabo Verde” sobre o assunto, e tive a
felicidade de adquirir esse jornal em versão digitalizada, com a ajuda do meu
amigo José Fortes Lopes, professor da Universidade de Aveiro. A entrevista, por
ser longa, será objecto do próximo capítulo.
Adriano Miranda Lima
(Continua)
Ora aí está um lenda de Mindelo aqui relembrada. Como disse Adriano M. Lima, o militar, Capitão: " ... Mota Carmo (...) deixou o seu nome escrito nas pedras da calçada de Mindelo, para o bem ou para o mal (...)"
ResponderEliminarEm boa hora apareceu alguém A.M_L_ que para além de ser mindelense é bem abalizado para nos informar sobre esta matéria, sobre a qual eu, por exemplo, andava há já um ror de anos curiosa em conhecer alguma coisa mais substantiva, como sói dizer-se, sobre esta intrigante personalidade e quase personagem que foi o Administrador de Concelho, Mota Carmo. Desde de miúda que ouço falar dele por parte de familiares mais velhos e já desaparecidos do mundo dos vivos, minha mãe (mindelense) meus tios, entre outros. E relevavam acerca de Mota Carmo não só os aspectos da sua autoridade marcante, mas também o anedotário mindelense de que ele era protagonista e alguns marcos da obra assistencial, caritativa e social que Mota Carmo realizou em S. Vicente.
Embora a par disto tudo, faltava-me este texto de Adriano que situou Mota Carmo historicamente no seu tempo e no contexto da urbe que era Mindelo à época. Obrigada.
Abraços
Ondina
Regozijo-me ver publicado aqui (devia ser também em outros lados) este escrito que o meu amigo tinha escrúpulos em publicar.
ResponderEliminarEmbora criança nessa altura, lembro-me perfeitamente dos factos aqui mencionados do homem que metia respeito, furor e, também brejeirices.
Foi um grande trabalhador e nunca ninguém pensou sequer que "metia o dedo no mel". Tudo quanto fazia era bem apontado.
O texto do Adriano tão explicito (autêntico) não carece de outro tipo de comentários. Do moralista, lamento o lado hipócrita do administrador que exagerou em certos comportamentos que mancharam profundamente o seu trabalho. Todavia se houvesse uma sondagem eu votaria "por".
Grato pela divulgação do trabalho desta figura que, de uma forma e de outra, marcou a ilha do Porto Grande.
A entrevista de Mota Carmos ao jornal “Notícias de Cabo Verde” sobre os problemas de SV nomeadamente as suas preocupações sociais dá uma nova percepção do homem, na sua dimensão política e humana
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