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domingo, 24 de maio de 2015

[8177] - BOM APETITE...


DA CULINÁRIA NACIONAL

Publiquei em Abril de 2010 artigo com o mesmo título, que retomo por a cozinha nacional já quase limitar-se à catchupa guisada nos restaurantes e hotéis, quando é bastante rica e variada. Irei fazer um resumo desse artigo (que pode ser encontrado completo em Ês Ca Ta Cdi!) em protesto contra a actual culinária. Em S. Vicente, por exemplo, come-se cada vez pior nos restaurantes e hotéis, à base de produtos importados, até carne de porco de má qualidade: serviram-me, num restaurante de português, duas fatias de rolo de carne de porco assada com o nome de pernil, cabrito na brasa, prato que nem lembra ao diabo, carne de porco moída com o nome de febras, e noutro, em tempo famoso, de patrício, cobraram-me 4 couverts e 4 doses de música, para quatro pessoas, sem ter pedido couvert nem música. Desafore!, diria o nosso imortal Djunga Fotógrafo.
Um dos volumes de Os Gatos, de Fialho de Almeida, tem um longo capítulo sobre a cozinha portuguesa, que ele considera a melhor do mundo e explica porquê, referindo-se aos pratos nacionais com aquele conhecimento de viajante e bom apreciador de iguarias, numa descrição minuciosa, bela e aliciante: “a cozinha portuguesa, a mais requintada, a mais voluptuosa e a mais sápida cozinha do mundo, e a única grande concepção que tivemos, de carácter anónimo, digna de arcar com a das epopeias cíclicas das raças aglutinativas e persistentes […]”
Como também conheço vários países - europeus, americanos e africanos onde estive de passagem ou trabalhei –, cheguei à mesma conclusão de Fialho: a excelência da culinária portuguesa, a que acrescento os seus vinhos. Só é pena os portugueses não saberem valorizar as suas vantagens; os vinhos, o azeite de oliveira, presunto de porco preto – os espanhóis compram os animais, fazem os presuntos e vendem-nos em Portugal e em todo o lado como coisa sua -, e outras especialidades -, até por serem o quarto produtor vinícola europeu, e, quanto ao azeite, haver poucos países capazes de produzir azeite (só os de clima mediterrânico), que tem a vantagem de não conter colesterol, esse gongon das artérias. 
Vamos começar pela nossa cozinha, cujos pormenores receituários poderão ser obtidos no livro de culinária, Cozinha de Cabo Verde, com os detalhes de uma conhecedora da nossa cozinha, Maria de Lourdes Chantre, que tem, além disso, um interessante prefácio do mestre Dr. Aurélio Gonçalves. O Dr. Baltasar Lopes da Silva, na sua reacção à apreciação do antropólogo Gilberto Freyre após vista relâmpago a três ilhas de Cabo Verde, também nos fornece elementos interessantes sobre a nossa culinária, contradizendo o que declarou o mestre brasileiro (ver Baltasar Lopes, Escritos Filológicos e Outros Ensaios, capítulo gastronomia e culinária, reunidos e fixados por Arnaldo França e Alberto Carvalho). Não irei, obviamente, falar das receitas, mas simplesmente citar os nomes dos manjares e a composição de alguns, dos que conheço, já provei ou de que ouvi falar. 
Lembro-me de ter falado detida e amenamente com a proprietária da Residencial Jardim, na Vila da Ribeira Brava, em S. Nicolau, onde já estive por duas vezes hospedado, que me contava receber vários estrangeiros, principalmente franceses. Aconselhei-a a aperfeiçoar-se nos pratos regionais e nacionais para os estrangeiros, por estes estarem fartos da comida standard das pensões, hotéis e restaurantes. Mesmo em S. Vicente, fiz a apologia das nossas iguarias aos donos de restaurantes com quem tenho alguma confiança, incitando-os a cultivar a culinária nacional que é, de longe, melhor do que muitas de outras bandas que vêm com nomes franceses e ingleses, por a nossa ter a portuguesa na base – das melhores heranças coloniais, quase em pé de igualdade com a língua. Da cozinha portuguesa, ainda dizia Fialho de Almeida, “as descobertas não serviram só para dar vazante ao espírito batalhador e às más inclinações dos fidalgos fadistas que se arruinavam na metrópole, senão delas auferirmos, com as especiarias do Oriente, os picantes do Brasil e a arte de doçar dos países gulosos, a Turquia, a Índia e os sultanatos mouros da orla da África, subsídios culinários, condutos, mimos, receitas, que muito cedo nos fizeram tomar a dianteira dos povos gastrónomos. Assim, também não há povo que se gabe de tamanha porção de pratos nacionais”. E acrescenta, mais adiante, “sob o ponto de vista da alimentação, nós estávamos há dois séculos já na idade dos guisados, enquanto o grosseiro inglês permanecia ainda nas carnes sangrentas, reminiscência dos períodos antropófagos, e o ardiloso francês nas massas e picados, isto é, nos jantares em pílulas, cujo último resultado é nada menos que a supressão do paladar”.
Devemos, portanto, orgulhar-nos dos nossos pratos nacionais, dos que se transmitem por tradição e os estrangeiros não sabem confeccionar, mesmo naturalizados. Tomem nota da definição de Fialho de Almeida, para poderem ter argumentos para inchar a cabeça dos que desconsideram os nossos pratos nacionais, como feijão com cabeça de porco, catchupa guisada com lascas de toucinho, sanfana e sarrabulho: “Um prato nacional é uma composição culinária rebelde à escrita dos manuais, característica, inconfundível, incapaz de se exprimir em quantidades de ingredientes, fracções de tempo, e acção rápida ou lenta do frio, do calor, da água, do gelo, do uso da peneira, do passador, da faca ou da colher. Transmite-se por tradição: tendo chegado até nós por processos lentos, e contraprovas de biliões de experimentadores, sucessivamente interessados em o fixar na sua forma irrepreensível, resulta ser ele sempre uma coisa eminentemente sápida e sabida”. Aos pratos nacionais contrapõem-se os chamados pratos “compostos”, “essas mixórdias de comestíveis e temperos, doseados a poder de balança que os cozinheiros literários enchem páginas e páginas de seus tratados de cozinha”.
A dona da Residencial Jardim, de que falava, animada com a minha conversa, contemplou-me, durante o tempo que aí estive hospedado, com caldo de peixe com todos os matadores, modge de capado – prato típico (regional) de S. Nicolau -, além de, ao pequeno-almoço, catchupa guisada com linguiça da terra e ovo estrelado, cuscuz com manteiga local, queijo de cabra da terra com mel de cana e um pudim de queijo só comparável ao que sabe fazer a minha mulher, que também é patchê, de receita familiar que ninguém conseguiu ainda imitar. A outra proeza culinária da minha cara-metade é o pudim de café. 
A minha mãe era uma excelente cozinheira e doceira. Dizia ter aperfeiçoado os seus dotes culinários na Ilha Fogo, onde sempre se cultivou a boa cozinha e a arte de pastelaria, bolos e pudins, com a comadre Nhanhá de Bia e outras amigas. A tradição do Fogo vem dos tempos antigos da fidalguia local. Nos casamentos havia – não sei se a tradição se mantém – vinte e tantos pratos, todos diferentes e primava-se pela qualidade e apresentação dos pratos. O “pie” (tarte) de limão da minha mãe, de tradição Bravense, importada dos EUA através dos nossos emigrantes, mereceu sempre elogios de todos que tiveram a sorte de o provar.
 Vejamos mais alguns pratos regionais e nacionais cabo-verdianos, antes de entrar nos portugueses. Vou enumerá-los sem nenhum ordem especial,
Moreia frita, mormente a moreia pintada, peixe seco substituindo o bacalhau (particularmente o badejo, por pertencer à mesma família), botchada, friginato, guisado de capado e de tchacina, milho em grão ou catchupinha com linguiça da terra, xerém com carne de porco, djagacida com manteiga de garrafa do Fogo (quase confinada à Brava e Fogo, quando se devia estender a mais ilhas), arrozcatum, feijoada de feijão ervilha ou feijão Congo e linguiça da terra, pastel com diabo dentro, torresmos, pirão e rolon preparado de várias maneiras, camoca, cuscuz de milho e mandioca com manteiga, o fongo, a brinhola, a batanca, o milho aliado ou perentém, bolos diversos, pudins, guloseimas diversas, grog (devo confessar que o melhor grog que já bebi não foi em Santo Antão, mas em S. Nicolau, da reserva do amigo Toi Areal Alves, por volta de 1962, aquando de uma visita de férias, que o pai guardava, para envelhecer e conferir mais qualidades, em barris de madeira de carvalho que transportavam vinho doce de Portugal), licores variados, etc.
Os nossos hotéis, pensões e restaurantes deveriam promover esses manjares nacionais em vez das mixórdias que, bastas vezes nos impingem, estando inclusive a piorar na cozinha. Deveríamos ter orgulho nisso, como valor nacional. Há, ainda, gente que sabe preparar bem tudo isso pelas ilhas, e bom seria o seu aproveitamento e protecção. Por exemplo, na Boa Vista, Maio, Tarrafal de Monte Trigo e de S. Nicolau, há patrícios que dominam à perfeição a técnica da salga e secagem de peixe; no tempo em que funcionava a SCAPA, conseguia excelentes peixes secos, por intermédio do bom amigo de infância que aí trabalhava, Adriano St. Aubyn, mas actualmente os peixes que se secam em S. Vicente são os que já estão a apodrecer, o que não acontece com os da Boa Vista, Maio e Tarrafal de Monte Trigo e de S. Nicolau. Na Boa Vista e Maio ainda há peritos na feitura daquele queijo cónico maravilhoso de cabra, que praticamente desapareceu do mercado. Isso para só apontar secagem de peixe e fabrico de queijos, porque há milhentos de outros peritos noutros manjares, “nesses regalos supremos da vida vegetativa”. Porque não aproveitá-los e valorizá-los? Em Lisboa há restaurantes que apresentam, uma vez por semana, a nossa catchupa feita por cozinheira cabo-verdiana. O midge cutchid já vem do Brasil, porque o brasileiro tem um prato semelhante à catchupa (mas doce-canjica) que utiliza midge cutchid. 
Vá lá que entrou nos hábitos mindelenses e praienses, em restaurantes, a catchupa guisada com linguiça e ovo estrelado ao pequeno-almoço.
E a culinária portuguesa? Deixemos falar Fialho de Almeida que conheceu e apreciou essa cozinha.
“Quem não comeu já a caldeirada de safio e eirós, as caldeiradas patrícias e a caldeirada da raia? Não falarei das tripas do Porto, prato de reis em edição de povo, nas tabernas; nas frigideiras de Braga; nas iscas lisboetas, nem na perdiz à moda de Mirandela, nem no carneiro à moda de Valença, nem nas sopas de tomate, ovos e queijo, ou nas migas com paio, do Alentejo, - nem, enfim, no coelho com sangue e arroz da Bairrada, esmagado à pedra – nem no sagrado e arqui-simplíssimo caldo verde, essência da vida, móvel da actividade e da força que fez o segredo da validez das nossas raças do Norte…”
“As delícias de um prato nacional (em oposição a um prato ´composto´) são delícias físicas, espontaneamente intuitivas, e não demandando por isso educação alguma das papilas sensoriais gustativas da boca e seus anexos. Correspondem a sínteses de paladares ancestrais, afinados por hereditariedade através das gerações humanas e dos tempos, quadram à generalidade sem mais preparo ou exame, e assim vão da cabana ao palácio, apreciados com o mesmo favor benevolente”.
Outros pitéus não assinalados por Fialho, talvez por não serem tão populares ou não existirem no seu tempo, que são tipicamente portugueses: pastel de nata, pastéis de bacalhau, o bacalhau nas suas diferentes maneiras de preparação e as alheiras de Mirandela (invenção dos judeus novos – marranos - no tempo da Inquisição para levarem à certa os inquisidores que mandavam inspeccionar as suas casas para se certificarem se já comiam carne de porco), a chanfana, o pernil à padeiro, a pescadinha de rabo na boca frita com açorda, chocos com ou sem tinta grelhados e tantos outros pratos nacionais, “regalos supremos da vida vegetativa”.
Fialho de Almeida protesta contra a desvalorização dos pratos nacionais e da arte de cozinhar e comer que atribui a falta de coesão nos gostos do público, e por culpa dos inovadores acéfalos, para quem as coisas nacionais não valem a mais reles boutade anglo-gaulesa.
Entre nós, também, se passa algo semelhante, desde que apareceu a comida de plástico, o fast food e passou a dominar o mercantilismo que a importação favorece. Os nossos chamados operadores económicos (por operarem os indefesos consumidores a sangue frio) – afinal, em verdade, rabidantes e comerciantes que nada fazem para promover a produção nacional. Há que reabilitar a cozinha nacional e valorizar os nossos artistas da cozinha, de entre os quais me lembro, no Fogo, do Pazinho, em S. Vicente, a Nha Tanha, do Restaurante S. Nicolau – liquidada à facada por bandido que nunca se conseguiu identificar, para lhe roubar alguns cobres -, a viúva do Mateus Tchaina e um dos manos Leite.

 Arsénio Fermino de Pina
(Pediatra e sócio honorário da Adeco)
S.Vicente, Maio de 2015

5 comentários:

  1. Este é daqueles textos que dão ao leitor vontade de os comer: óptimo na originalidade, excelente na pesquisa e brilhante nas comparações. Por ele, o Arsénio merecia ser condecorado com a Grã-Cruz do Arrozcatum.

    Braça gastronómica luso-cabo-verdiana,
    Djack

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  2. o Dr. Arsénio de Pina tem inteira razão quanto à degradação da nossa culinária a nível dos restaurantes e hotéis. Uma tristeza.
    As ementas têm nomes bonitos em três línguas. Pede-se escalopes, trazem bife de cebolada, bife da casa, respondem não haver e aconselham filé, que é 500 paus mais caro, eu próprio já pedi o prato do dia - filé de bonito - para mim e outro para minha mulher, e veio um peixinho do tamanho de uma cavala pequena, cortado ao meio com a espinha central, metade para mim e outra metade para a minha mulher, percebendo-se que o peixe foi cozido e depois grelhado. Uma afronta meus caros, quando há algum tempo se comia bem nos restaurantes. Parece que os cozinheiros não conhecem os pratos que a ementa apregoa...

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  3. Artigo saboroso e suculento do Arsénio de Pina, com muitas e ricas sugestões para os nossos restaurantes em Cabo Verde. Quem vai a Cabo Verde vai à procura dos gostos locais e não das comidas importadas.

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  4. Ainda mal refeito do lauto banquete que é a leitura deste texto, venho registar o regresso a estas páginas do amigo Adriano, lamentando, profundamente, as razões da sua recente ausência...
    Um forte abraço,
    Zito

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  5. Bom artigo que valoriza a importãncia da comida tradicional em relação ás variantes rápidas ou pronto a comer da escola importada.
    Há um proverbio francês para bons entendidos, que diz que 'o homem cava a sua sepultura com os seus dentes'

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