Meu testemunho na Conferência Internacional pelo 40º Aniversário da Independência de Cabo Verde na Fundação Calouste Gulbenkian
Raras vezes falo da acção da delegação que se deslocou à Suécia para a discussão de um projecto de Saúde Materno-Infantl e de Planeamento Familiar (PMI/PF) proposto por esse país na sequência da visita de uma missão sueca a S. Vicente. Aproveitei a ocasião para o fazer até porque pouca gente conhece o assunto e os tempos são diferentes no capítulo da motivação patriótica, da ética e da valorização dos quadros nacionais não enfeudados a partidos políticos.
O Ministério da Saúde recebeu uma proposta de financiamento de um projecto de PMI/PF, após a visita de dois técnicos de uma ONG sueca chamada Radda Barnen (RB) e da SIDA (departamento de cooperação internacional sueca), que tiveram uma longa conversa comigo em S. Vicente, com convite à deslocação à Suécia de uma delegação nossa. Esta foi constituída por mim, como chefe de delegação, Dr. Pedro do Rosário, duas assistentes sociais, Dory Silveira Pires e Fátima Neves Ramos, mais uma enfermeira parteira, Tutu Évora.
Eu e o Dr. Pedro do Rosário tivemos várias sessões de trabalho em Cabo Verde, sozinhos e com elementos dos Assuntos Sociais, na perspectiva de elaborarmos uma alternativa à proposta sueca em função da nossa disponibilidade em pessoal e instalações, até porque em 1976 pouco se sabia de saúde materno-infantil e planeamento familiar por ainda nem se ter estabelecido a Estratégia dos Cuidados Primários de Saúde da OMS e de Saúde para Todos no Ano 2.000, elaborada em Alma Ata, em 1978; Portugal, que poderia fornecer-nos algo sobre a matéria, vivia em turbulência política e ainda balbuciava na matéria, nem sendo fácil, nem bem visto o contacto por nos termos libertado do seu jugo colonial havia pouco tempo, e o escritório da OMS era na Guiné-Bissau. Tínhamos uma mini experiência na matéria, o Dr. Rosário, no Centro Social da Bela Vista, com grávidas e no planeamento familiar, e eu, no Dispensário, onde, à tarde, fazia vacinações em massa, aproveitando vacinas ofertadas pela UNICEF, e controlo nutricional de crianças com menos de sete anos utilizando o sistema da fita braquial a cores.
A delegação chegou à Suécia em Fevereiro de 1977, num inverno dos mais rigorosos de que se tinha memória, eu e o colega quase de terno de algodão e gabardina para suportar tamanho frio. As senhoras iam mais bem prevenidas porque, em ocasiões próprias, botavam os seus boubous rendados que despertavam grande curiosidade e interesse visto não serem frequentes nessas paragens na época. Felizmente, ficámos bem instalados, raramente com tempo livre para passeatas ao ar livre polar.
O trabalho foi duro, com horário militar, um calendário minucioso e apertado, e eu, a maior vítima, por ser chefe da delegação, mais vezes abordado em almoços e jantares, em que, enquadrado de ambos os lados por colegas suecos, mal tinha oportunidade para levar uma garfada à boca, porque estes se arrevesavam a fazer-me perguntas (a maior parte das vezes já feitas antes por outros para testarem a nossa sinceridade). Perdi peso durante esses quinze dias por mal poder comer, dada a minha responsabilidade e pelas preocupações que povoavam a minha mente. O colega Pedro do Rosário safava-se melhor porque, como fala pelos cotovelos e utilizava, sem complexos, o francês aportuguesado, desbaratou quem quis fazer-lhe perguntas à mesa; lembro-me de o ouvir falar da nossa riqueza em lagostas, moreias, perceves, lapas e cracas, tendo até tido a impertinência de me perguntar como se dizia perceves em francês.
Tínhamos reuniões durante todo o dia e, à noite, a delegação reunia-se no hotel para apreciar o avanço das discussões e preparar-se para o dia seguinte, por vezes com a ajuda de um dos técnicos em planeamento familiar, Dr. Halkjaer, e de uma enfermeira, Harriet Birkham, que veio depois para Cabo Verde ajudar-nos na preparação do pessoal e se radicou no país, depois da aposentação, o mesmo acontecendo ao administrador, Per Tamm, dois elementos-chave do projecto. Nas poucas horas livres levavam-nos a visitar serviços e alguns professores, conselheiros e altos funcionários da RB e SIDA que, posteriormente, nos visitaram em Cabo Verde.
Nas nossas discussões diárias a nível da RB, o trabalho ia progredindo lentamente devido às exigências e desconfianças da parte sueca e à dificuldade de comunicação – em francês e inglês – o que nem sempre era fácil para discutir matéria que exigia certa habilidade e argúcia na argumentação, que transmitissem a nossa capacidade de pôr de pé um tal projecto, e a real medida do nosso empenhamento, determinação e disponibilidade em aceitar sacrifícios em benefício do país. Outrossim, os parâmetros suecos não se adaptavam ao que pensávamos criar em Cabo Verde; teríamos de fazer bastantes adaptações: inventámos nova categoria de pessoal – ajudantes de enfermeira e de assistente social, que seriam treinadas em relativamente pouco tempo em tarefas específicas e limitadas (que vieram manifestar-se excelentes executantes nas suas tarefas, desempenhando, às vezes, melhor as funções do que técnicos do ramo), para ultrapassar a falta de pessoal de enfermagem e assistência social de que padecíamos no início da independência, e ainda de encarregados do depósito de equipamento, medicamentos e instrumentos, administrador homólogo, chefe de secretaria, arquivista e dactilógrafo. Nessa altura o país não dispunha de nenhum plano e programa de saúde, mas tínhamos um documento de estratégia nacional que era meio caminho andado, mais do que uma simples estratégia, por conter alguns elementos do futuro programa, que defendemos com unhas e dentes.
Nessa altura não sabíamos que a RB tinha cerca de dezena e meia de projectos do mesmo tipo em vários países do Terceiro Mundo que não caminhavam lá muito bem devido à corrupção e desinteresse dos nacionais, estes mais motivados em actividades clínicas rendosas, vencimentos chorudos e sem sentimentos de pertença a uma pátria. À posteriori, pensei que a RB andou, muito provavelmente, a testar-nos para se certificar se seríamos capazes de levar a bom termo o empreendimento, dadas as infelizes experiências anteriores. Mantivemo-nos firmes nas nossas convicções e idealismo que eram imensos. Não tínhamos nada a ver com os hábitos corruptivos de nacionais de outros países. Queríamos, realmente, era obter meios para pôr em prática o que idealizávamos para o nosso país e nem pensávamos propriamente em nós próprios, nas nossas famílias ou em privilégios pessoais. Vivíamos o início da independência e todos os sacrifícios eram consentidos em benefício do Estado nascente. Esguichávamos entusiasmo e patriotismo por todos os poros, como a maioria dos cabo-verdianos que viviam a aventura da independência. De resto, desconhecíamos até o que era corrupção a nível do Estado, e o que se passava nesse capítulo noutros países subdesenvolvidos. Cabo Verde foi um exemplo quase impar em África em termos de nacionalismo puro, não chauvinista - aquele sentimento íntimo de pertença a uma pátria –, de honestidade e utilização correcta e criteriosa dos dinheiros do Estado. Só me apercebi do grau de corrupção de certos países africanos quando trabalhei no quadro da OMS, porque antes não acreditava no que se dizia: achava que eram calúnias dos colonialistas para desacreditar os dirigentes dos países do Terceiro Mundo. Outrossim, corrupção não é apanágio nem invenção do Terceiro Mundo. Foi ensinada e levada para as nossas terras pelos do Norte, corrupção graúda, como vem sendo descoberta nos nossos dias, praticada a nível elevado, de governos, megas companhias, empresas públicas e bancos.
Ao longo das discussões fomo-nos dando conta de que havia cautelas demasiadas da parte da equipe sueca, lentidão na progressão dos trabalhos e pontos controversos, como o não financiamento de construções, propostas de pagamento do nosso pessoal à tabela sueca, aquisição de contraceptivos e vacinas. Nesse impasse, sugeri que se encontrasse um intérprete para que pudesse exprimir adequadamente o que tínhamos para lhes contrapor. O tradutor foi o condutor do carro que nos transportava, ex-estudante português, que dominava o sueco, e fugira do país para não ser mobilizado para a guerra colonial. Então, inspirado, com calor e convicção, dando a real dimensão do nosso empenhamento, desprendimento argêntico e patriotismo, realçando a integridade moral e ética dos nossos governantes saídos de uma renhida luta armada, pude explicar-lhes melhor e convincentemente o que nos animava nessa aventura do projecto. Não queríamos nada para nós, nenhum privilégio pessoal. Rejeitámos vencimentos à tabela sueca porque continuaríamos a ser pagos pelo orçamento do Ministério da Saúde. As únicas pessoas a receberem salário dos fundos do projecto seriam as categorias novas criadas, não previstas no orçamento do nosso ministério. Este iria integrando, anualmente, uma boa percentagem das despesas no seu orçamento de modo a que, ao cabo do tempo previsto do projecto (cinco anos), a totalidade das despesas já estivesse a ser suportada pelo orçamento do ministério. Procuraríamos maneira de as vacinas e os contraceptivos nos serem fornecidos por outras instituições, pensando na UNICEF, OMS e FNUAP, o que veio a acontecer, de modo a que houvesse poupança, a qual, sugeríamos, pudesse ser utilizada nas construções, dado que sabíamos que o Estado iria ceder-nos todas as instalações disponíveis, mas que, em certos locais, haveria que construir por falta de disponibilidade. Como esse dinheiro constava do orçamento do projecto proposto, pedíamos que assim continuasse para essa eventual utilização.
Enquanto ouvia o tradutor durante as pausas, ia apreciando as reacções das pessoas em redor da grande mesa de trabalho, e apercebia-me de que as minhas palavras estavam tendo bom efeito, e até observava um certo espanto e satisfação nos rostos dos presentes. O certo é que foi a nossa última reunião. Tínhamos conseguido convencê-los da veracidade da nossa argumentação.
Apresentaram-nos, como última exigência, que fosse eu o director do projecto de PMI/PF, o que, embora dependesse do Ministério da Saúde, julgava ser viável e altamente provável dada a minha experiência e especializações (Pediatria, Saúde Pública e Medicina Tropical). Perguntaram-me como iria sentir-me na pele de director de um projecto de tamanha responsabilidade. A resposta foi imediata: como um general de Napoleão que, ao aproximar-se do cavalo para uma batalha decisiva, reparando que lhe tremiam as pernas, dissera às mesmas: mais tremeriam se soubessem para onde vos quero levar. Sorriram com a minha tirada. Presumo que acreditaram em mim pela convicção que punha nas palavras, não desmentida pela atitude dos colegas da delegação, até porque as decisões eram tomadas por consenso.
Vim a saber mais tarde, que era o primeiro projecto da RB com director nacional, portanto, não sueco. Regressámos, não com os prometidos seis milhões e meio de coroas suecas, mas com onze milhões e meio. Não nos garantiram fundos suplementares nem nos deram autorização para utilizar as poupanças em construções. Limitaram-se a sorrir quando fizemos a proposta e deixaram essas verbas orçamentadas.
O nosso tradutor português, de nome Vidal, que já era um amigo, confessou-nos depois que a minha argumentação tinha sido convincente e decisiva, mormente quando abrimos mãos de regalias e privilégios pessoais em benefício do país e manifestámos confiança nos nossos dirigentes, a maioria antigos companheiros de escola. Estavam habituados a comportamentos bem diferentes de outras delegações, como vim a constatar mais tarde durante umas férias que me foram oferecidas, mais a minha mulher, pela RB, na Suécia, como prémio pela excelência do trabalho desenvolvido.
Foram quinze dias de trabalho insano! Sentimo-nos aliviados e felizes ao apanhar-nos no avião de regresso. Não tínhamos tido nenhum dia de sol e suspirámos de contentamento quando, depois de atravessar espessas nuvens cinzentas, vimos o Sol. Pareceu-nos ter chegado a casa.
No primeiro ano do projecto tivemos inúmeras visitas de funcionários da RB/SIDA e jornalistas, muito provavelmente em missão de inspecção e controlos. Todos tiveram uma refeição em minha casa, em ambiente familiar, em representação do país, à minha custa. Somente ao fim de um ano é que tive de solicitar um fundo ao M. da Saúde para tais representações, por o meu vencimento, em dose homeopática, já não suportar tais rombos. Ao cabo do primeiro ano de execução do projecto tínhamos poupado cerca de vinte mil dólares do orçamento do projecto, que, na altura, era muito dinheiro. Pedi-lhes autorização para os utilizar na adaptação do Centro Social da Bela Vista às necessidades do projecto. Como já se tinham convencido da nossa integridade moral, capacidade de trabalho e de nossas iniciativas, diminuíram as visitas da sede e deram-nos carta-branca para as construções, tanto em S. Vicente como noutras ilhas, aumentando até, mais tarde, o orçamento para permitir as grandes construções na Praia e Santa Catarina. Foram realmente inexcedíveis na vontade de nos proporcionar os melhores meios para o trabalho, pelo que ficámos eternamente gratos à RB/SIDA.
O projecto levou dez anos a estender-se a todo o país e a integrar-se no M. da Saúde. Da minha experiência em África e do que pude saber através da OMS, foi o único projecto africano bem-sucedido e com integração financeira total no ministério da saúde como programa nacional. Foi considerado programa exemplar pela OMS, e modelo pela Rb/SIDA, onde faziam estágio alguns nacionais de países africanos antes de iniciarem projectos similares.
Antecipámo-nos à OMS na criação e execução dos Cuidados Primários de Saúde (CPS) inventando a PMI/PF, na qual incluímos, além da saúde materno-infantil e planeamento familiar, as Vacinações, Nutrição, Educação Sanitária e Medicamentos Essenciais. À semelhança do Senhor Jourdan da peça de Molière fazíamos os CPS sem o saber, e ainda introduzimos a rehidratação oral com sais (citrato de sódio) e glucose antes da existência do Oralite (SRO) da OMS/UNICEF, de uma experiência brasileira de que tinha conhecimento.
Este é um exemplo do que pode o patriotismo e o que se consegue realizar com honestidade e espírito de sacrifício. Obviamente que vencimento à bitola sueca cair-nos-ia maravilhosamente bem porque o pago pelo nosso Estado era minguadíssimo, dando quase só para manter o metabolismo de base. Embora acumulando três especialidades, ganhava tanto quanto um médico de 1ªclasse – que já era antes – e estava impossibilitado de fazer clínica privada por se ter socializado, não a Saúde, mas os médicos após a independência (os médicos com barbitche e as outras profissões em pastoreio livre, como escrevi em artigo publicado em 1988). Todavia, nessa altura, seriam bem poucos os que pensavam nos seus interesses pessoais e familiares. Fizemos multiplicar os pães em benefício do país e da população sem esperar, nem exigir para nós nenhuma côdea desse suculento pão. Nada disso encontrei noutros países onde trabalhei a partir de 1986 no quadro da OMS.
Embora tenha continuado com vencimento pago pelo Estado, excluindo os dois últimos anos em que dirigi o projecto, em que tive um bónus mensal de dezassete mil escudos, fiquei, como paga nacional, com a fama de ter mamado em teta sueca durante os nove anos de direcção nacional do projecto.
A Radda Barnen e a Sida retiraram-se, satisfeitas, do projecto após a sua integração como programa Nacional no M. da Saúde, mas não do país, dado que o reliquat dos fundos do projecto e mais outro financiamento foram concedidos ao M. da Saúde para a construção e equipamento de oficinas e salas de aulas de outra obra de grande interesse social, o Centro Juvenil Nhô Djunga, no Mindelo, com capacidade para 250 alunos (dois terços internos), dedicado à formação técnico-profissional e reabilitação das chamadas crianças da rua, com uma secção para a recuperação nutricional de crianças malnutridas e educação de mães, infelizmente muito mal aproveitado, porque se o fosse, deixariam de existir crianças da rua no Mindelo.
Lisboa, 11 de Julho de 2015 Arsénio Fermino de Pina
Nota: Dispondo somente de dez minutos para a apresentação deste texto na Conferência Internacional, tive de dar saltos verdadeiramente olímpicos na leitura para transmitir algo da nossa missão na Suécia.
Naquele tempo do arranque do novo país independente, diga-se o que se quiser, o único móbil dos servidores públicos era efectivamente Cabo Verde e o seu povo. A mentalidade e a militância cívica desse tempo, viriam a perder-se, e ao que parece irreversivelmente. Hoje, o que as pessoas querem é arranjar um bom tacho para se governarem.
ResponderEliminarAs minhas felicitações ao Arsénio de Pina, um verdadeiro exemplo de honorabilidade, e um cidadão a quem Cabo Verde muito deve.
Na realidade, acompanhei de perto o nascimento deste projecto de PMI/PF quer por residir junto a zona de Bela Vista, como também em termos profissionais por serviços muitas vezes solicitados no âmbito do projecto. Com o PMI da Bela Vista acabaram-se em São Vicente a mortalidade infantil que era muito frequente na época as mortes frequentes na gravides e durante o parto. Era uma alegria ver as grávidas dirigirem em direcção a zona da Bela Vista durante o período da gravides todos os meses, e posteriormente com os bebes ao colo e a caderneta de controle na mão. Foi de facto uma novidade na altura, que também foi aceite pela população contribuindo assim pelo sucesso do projecto que posteriormente foi alargado as outras ilhas.
ResponderEliminarEstou extremamemnte feliz em encontrar estas informações sobre a entrada da Save the Children em Cabo Verde, que neste momento está a preparar de novo o seu regresso, com a apoio as Organizações da Sociedade Civil na criação de uma Coalizão Caboverdiana para os Direitos da Criança.
ResponderEliminarGrata por tudo e por todos que sempre tiveram Cabo Verde em primeiro lugar