FESTA DOS TABULEIROS 2015 – O DIA SEGUINTE
Passada a Festa dos Tabuleiros, invade-nos sempre uma irreprimível nostalgia, e nos dias seguintes só resta saborear a recordação do doce travo que ela deixa impregnado nos espíritos. Mais uma vez, a cidade e o concelho de Tomar estiveram à altura da sua mais importante efeméride e por isso merecem o apreço de todos os munícipes. Voltou a assistir-se ao mesmo entusiasmo generalizado, à mesma alegria unanimemente partilhada, à mesma efusão emotiva em torno de um ideal comunitário. É como se uma mega explosão de energia a um tempo criativa e afectuosa deflagrasse sobre a cidade, irradiando para todos os cantos do espaço público e dos lares, não deixando ninguém indiferente. Desde a mais simples iniciativa do povo anónimo até ao planeamento, preparação e coordenação das actividades colectivas mais complexas e variadas, sobejas razões há para saudar e aplaudir o empenho conjugado do seu Mordomo, da Comissão de Festas e da Autarquia. O mesmo é aplaudir o povo do concelho, em cujo coração radica a mística desta celebração. O tempo passa, as gerações revezam-se, mas o entusiasmo e fervor em torno deste evento parecem em crescendo e em busca de outros motivos e iniciativas para o seu engrandecimento, por mais que nos sintamos tentados a cristalizar-nos em fórmulas antigas. Invoca-se amiudadamente a tradição e o respeito pelos usos e costumes que congregam a essência desta Festa, mas constata-se que os seus elementos de envolvência exterior e complementar foram, ao longo dos tempos, sofrendo modificações e ajustamentos, e sempre numa perspectiva da sua adequação às dinâmicas sociais e da modernidade.
No entanto, qualquer sugestão no sentido de alterar ou conformar esta ou aquela particularidade com as exigências da actualidade, tende a esbarrar quase invariavelmente com recusas invocando o argumento da salvaguarda da “tradição”. E aqui, muito a propósito, transcrevo estas muito felizes palavras do Dr. Godinho Granada contidas no seu excelente artigo (Para além dos Tabuleiros que passam) publicado neste jornal em 18 de Junho do corrente: “… Compreendendo que a mulher de Tomar, com o seu tabuleiro, é a imagem actual da nossa perplexidade perante a fecundidade criativa da Natureza e, por isso, a grande, única e universal valia da Festa Grande tomarense. O resto é acessório”.
Ora, depreende-se das palavras do ilustre tomarense e autor do erudito texto que a matriz da tradição concentra-se na mulher e o seu tabuleiro. A mulher, trajando o seu lindo e sugestivo vestido de uma alvura imaculada e com o tabuleiro à cabeça, integra um quadro simbólico do encanto festivo da natureza e do mistério dos produtos que ela amorosamente nos doa todos os anos. Essa matriz é, sim, insusceptível de alteração ou de reinterpretações casuísticas e temporais. Ela não pode ser minimamente beliscada e discutida, porque resulta de uma idealização tão bem concebida que se pode dizer que o criador da sua estética capturou a ancestralidade, imortalizou-a e imunizou-a às oscilações do espaço e do tempo futuros. Mas se o tabuleiro tem um valor que se cinge à sua materialidade intrínseca, a mulher tomarense incorpora e transporta na alma algo que é um valor absoluto porque mergulha fundo na espiritualidade. A mulher é a representação humana da fecundidade da “Mãe Terra” e, “Mãe Mulher”, é quem nos transmite a face visível e apreensível do mistério dessa criação no que ela tem de encanto, alegria e embevecimento, mas também de dor e sacrifício. Basta olhar para o esforço físico bem espelhado no rosto das nossas mulheres ao longo do cortejo, em consequência do calor e do desconforto do peso e volume do tabuleiro, para jamais esquecermos que a mulher é a verdadeira depositária da penosidade que é inerente ao prodígio da fecundação e da gestação. Julgo que a Deusa Ceres e a Rainha Santa Isabel se devem sentir felizes e orgulhosas, lá onde estiverem, ao reconhecerem que os tomarenses não perderam o sentido do ritual desta bela e imemorial tradição.
Posto isto, parece inadiável abrir um debate e reflexão sobre possíveis alterações capazes de serem introduzidas na Festa dos Tabuleiros de modo a que ela possa angariar todos os requisitos necessários em ordem a uma candidatura a património da humanidade e à exponenciação das suas inumeráveis virtudes como cartaz turístico. Algumas pessoas já abordaram esta questão mas convém relembrá-lo. Bastará olhar para as centenas de milhares de forasteiros que afluem de todos os pontos do país, para concluirmos sem esforço que esta Festa é hoje um verdadeiro ícone cultural de Portugal e um cartaz turístico único. Por isso, razão têm os que já se pronunciaram sobre a importância de manter sempre viva e actuante a memória da Festa, mediante um museu adequado à sua contínua divulgação como evento festivo de marcante ancestralidade, além da criação de uma comissão permanente para o estudo de quanto contribua para a sua revalorização num viés antropossociológico, cultural e económico.
Uns meses antes desta edição da Festa dos Tabuleiros, propus que as representações das freguesias desfilassem à frente dos seus tabuleiros com a seguinte fundamentação básica: “… a estética e o escalonamento equilibrado dos componentes do cortejo sairiam beneficiados, ao mesmo tempo que se dava ênfase à individualização da freguesia como obreira da laboriosa confecção do importante símbolo da Festa...” Desta feita, tive ocasião de confirmar e consolidar a minha opinião, que não foi considerada. Não se pode invocar o argumento da tradição para não alterar este ponto particular, porquanto se trata de um simples reajustamento na articulação do dispositivo. Também referi no mesmo artigo a necessidade de dotar o cortejo de mais bandas de música, conforme o número de tabuleiros, e voltei a sentir a necessidade de, pelo menos, mais uma, a ser intercalada na segunda metade do dispositivo. A música deve ser um continuum, a observar-se o mais possível, como elemento catalisador do imprescindível efeito emotivo e anímico.
Como nota negativa, no cortejo deste ano, notei um acontecimento inusitado e quanto a mim bastante lesivo da solenidade mística que importa preservar. Com grande frequência, ouvia-se, através da aparelhagem sonora pública, constantes avisos sobre horários de autocarro de excursionistas que foram alterados, sobre pessoas que se perderam e aguardavam os familiares em locais designados, etc. Compreende-se a utilidade prática desse recurso, mas convenhamos que é de todo inadequado estar a assistir-se ao cortejo e ver a sua solenidade conspurcada com um intempestivo aviso sonoro, tanto mais que tornando-se procedimento de rotina e repetitivo e não um expediente de emergência. Não me recordo de tal coisa em cortejos anteriores. Bem, é das tais coisas, por mais que se preveja existe sempre uma margem para a entropia.
Talvez seja prematuro utilizar este “day after” para outras propostas e sugestões, mas desde já afirmo que tem de se repensar o percurso do cortejo, de modo a privilegiar outras zonas da cidade em detrimento de um centro histórico actualmente pouco habitado e sem condições de espaço para acomodar dezenas e centenas de milhares de espectadores. Urge criar condições para uma mais judiciosa distribuição das centenas de milhares de visitantes pelas ruas e avenidas da cidade. Concomitantemente, talvez se imponha pensar num outro espaço para o cerimonial religioso de bênção dos tabuleiros, já que a Praça da República não permite que esse momento único e mágico seja presenciado senão por escassas centenas de pessoas. É um momento de uma grandeza ímpar e comovente que justificaria fosse partilhado por um número vastíssimo de visitantes. Conheço pessoas que lastimam nunca terem conseguido aceder à observação desse cerimonial. Qual a alternativa? Creio que ela existe e isso implicará transferência para um dos espaços amplos que a cidade possui, espaços que teriam de ser devidamente organizados e enquadrados com cenários condizentes com o momento e a solenidade. Sobre isto poderei opinar com mais pormenor e substância numa outra ocasião, mas a este respeito melhor dirão os arquitectos.
A verdade é que a Festa dos Tabuleiros justifica que se atente no redimensionamento do espaço físico em que se possa projectar com mais alcance a essência da sua espiritualidade e se maximize a fruição da sua espectacularidade emotiva por todos os que nos honram com a sua visita. Com efeito, há que exponenciar todas as suas potencialidades turísticas e há que preparar a sua candidatura a património da humanidade. Bem merecem os tomarenses e o povo português.
Algarve, 14 de Julho de 2015
Adriano Miranda Lima
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