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terça-feira, 8 de setembro de 2015

[8446] - OPORTUNIDADE ADIADA OU ESBANJADA?!

 DINAMIZAÇÃO CULTURAL E ACÇÃO CÍVICA

Os mais velhos estão recordados das chamadas “Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica”, de 1974 e 1975, do âmbito da 5ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas. O objectivo era conquistar as comunidades rurais, especialmente no Norte e no Centro, para o projecto revolucionário em que o país estava envolvido. Actividade que se justificaria e se compreenderia à luz de uma mera pedagogia cívica, abastardou-se a partir do momento em que certa esquerda radical passou a influenciar os trâmites do processo, comprometendo a isenção política que a linha maioritária do MFA se propunha no seu programa inicial. No fundo, o que o senso comum esperaria era que se explicasse às populações o que mudara no país, o significado do novo regime político, o papel das forças partidárias, a finalidade e importância do acto eleitoral, em suma, que se fomentasse alguma consciencialização cívica nas mentes temerosas e entorpecidas por quarenta anos de ditadura.
Esse processo não constituiu o embrião de coisa alguma que pudesse ter tido continuidade ou produzido um resultado que se avaliasse em função da autenticidade da sua pureza, porque a deriva revolucionária se encarregou de o matar à nascença. E com o contragolpe de 25 de Novembro de 1975, tudo ficaria definitivamente arrumado. Devolvido o poder aos civis, entrámos então nos eixos deste regime democrático que hoje faz parte da nossa rotina, mas que não se isenta de um escrutínio sobre as suas virtudes e principalmente sobre as suas insuficiências e debilidades.
Numa altura em que se avizinha um novo acto eleitoral, em que a nação terá de decidir se cauciona a governação destes últimos quatro anos de austeridade e retrocesso social, ou se deve apostar firmemente numa alternativa, eis que nos sobressalta a sensação de que a sociedade civil pode não estar suficientemente esclarecida e motivada para se pronunciar com a expressão maioritária e inequívoca que o momento exige. E será então caso para perguntar o que falhou no processo da nossa transição para a democracia para que se assista actualmente a um elevado e desconcertante nível de abstenção eleitoral e a um adormecimento cívico que tem tudo para nos devolver à situação de carneirada dos tempos de má memória.
É claro que as respostas só as não encontra quem não quer, tão evidentes são os nossos constrangimentos cívicos. Poder-se-á pensar que “as campanhas de dinamização cultural” do período revolucionário podiam ter tido um sucedâneo qualquer, bastando que os governos democráticos que se seguiram curassem que o vector cívico-cultural não fosse alienado da vida nacional. Desde logo, e essencialmente, no papel da televisão, que teria de conter programas educativos e de esclarecimento cívico sobre as questões mais candentes da sociedade, ainda que numa democracia liberal haja que conciliar esse desiderato com a liberdade editorial que rege a comunicação social. Mas, concretamente, passaria, sobretudo, por evitar que as televisões ocupem o horário nobre com os programas confrangedores e alienantes que conhecemos, mas que alegadamente são os que mais lhes beneficiam o “share” de audiência; ou prevenir que em programas de teor político haja comentadores que deixam a isenção política e a honestidade intelectual em casa para entreterem o ouvinte com os mesmos discursos redondos e ambíguos; ou que alguns jornais procurem o sensacionalismo, a especulação e a devassa de vidas privadas, para realizarem boas vendas.
Bem, tudo isto é utopia numa sociedade livre, dir-se-á. E a comunicação social privada responderá que oferece ao consumidor aquilo que é do seu gosto, até porque a promoção da literacia e cultura não é objectivo primacial do seu negócio. Depara-se-nos assim um círculo vicioso e com tendência para o agravamento do problema, porque quanto mais persiste a acção deletéria nos espíritos mais estes se deixam anestesiar e capturar. De facto, a filantropia não está nos planos do sistema financeiro e, bem pelo contrário, pode ser contrária aos seus interesses um espírito de cidadania mais interventivo, mais selectivo e mais crítico.
Mas o pior é que esta via para a moldagem dos espíritos é apenas a parte visível de uma estratégia neoliberal cujos planos de dominação passam por voos bem mais altos. A persistência com que se busca a privatização de tudo o que é rentável ou pode vir a sê-lo nos países, assim como as decisões congeminadas nas agências de notação de risco e nas instituições financeiras internacionais, fazem parte de uma concertação para a submissão das vontades nacionais ao primado do mercado. Quem o diz são cientistas sociais de renome e alguns deles prémios Nobel, a quem repugna que a vida humana se cinja actualmente a um simples cálculo contabilístico.
Olhando ou não para o caso da Grécia, caber-nos-á em breve decidir até que ponto podemos ou não continuar reféns do mesmo receituário básico de austeridade e empobrecimento que nos tranca os sonhos legítimos de maior justiça e igualdade. Haja clarividência cívica para ao menos perceber a importância do momento.

Tomar, 24 de Agosto de 2015
Adriano Miranda Lima



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