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domingo, 15 de novembro de 2015

[8652] - O FOLHETIM DE EUGÉNIO TAVARES - 02...


A Virgem e os Meninos Mortos de Fome

Episódio II

Sarda

                      “ Anoitecera, quando os pescadores de albacora viram uns marinheiros de bordo do baleeiro que pairava à boca do Insuão, conduzindo uma rede para a gruta.
 “ António de Cái, largou as linhas, o serrão, os aviamentos, e não teve mão em si que não arriscasse a dar fé: 
“ Deixou-se escorregar por entre a penadia; contornou os cabeços; dependurou-se pelo emaranhado de trepadeiras que revestiam os rochedos; cavalgou sobre a cornija que fecha o grande arco natural à boca da gruta, e pode ver a americana estendida sobre folhas secas, e ao lado, de joelhos, Sarda falando-lhe:
-- Pomba, por que razão te abandonaram?
-- Porque amei
-- Só?
-- Só e porque trago no seio a prova do meu crime.
-- E quem é o fruto que trazes no teu ventre?
-- De uma vítima do ódio dos da minha raça: De um filho teu.
“Contou-me António Cái que aquilo foi uma cena medonha. Os latidos da bruxa faziam dobrar o grande sino granítico  do eco das quebradas, e punham os cabelos em pé à montanha.
“ A velha precipitou-se, tropeçou, caiu, levantou-se, rolou, lacerou-se pelas arestas agudas, arrastou-se até à praia, onde ficou inanimada, envolvida na franja branca das ondas, indo e vindo ao sabor da ressaca…
Perdi um bocado da narração de Franque; tocara a hora da ceia e o capitão tinha exigências disciplinares. Mal pude, porém, deixar a mesa, fui dum pulo, à proa.
Semelhante a uma grande ave aquática, de longas asas cinzentas, o palhabote desferia voo rente com as ondas. O vento crescera; zunia pelas enxárcias; e na esteira avincada e espumante, voejavam, tremulamente, com grandes borboletas negras, as almas do mestre.
Franque continuava:
“ Eu e os meus companheiros de pesca abicamos à praia.
“ Arrastámos a lancha e fomos à cata de lenha. Na revolta de um beiço do rochedo, descobrimos a pequena família selvagem.
Sarda, a americana e do filho, de meses ainda.
“ O pequeno acordara. Deitara as mãozinhas de fora, e, do regaço da mãe, brincava com a grenha hirsuta que revestia a cabeça russa da velha, infantilmente pousada sobre os joelhos de Noémi.
“ E dizia, a americana, com a infinita suavidade da sua voz enternecida.
-- “ Nunca lhe poderei pagar tanto bem, mãe.
“ Sarda virou-se e pôs os seus olhos em Noémi.
-- “ Este pequeno é seu filho duas vezes, mãe… Deixar-vos-ão criá-lo, aqui, em paz? 
“ A velha endireitara-se. Olhava para Noémi com indizível expressão de ternura.
O pequeno continuava com as mãozinhas polpudas e róseas a acariciar-lhe a fronte, de mansinho, aqueles dulcíssimos sons inarticulados que fazem a felicidade das mães.
“ Deixava-se deliciosamente afagar, a bruxa; os seus olhos pareciam-se com os olhos enternecidos de um cão. Nos ombros nus, a pele seca aderia ao robusto cavername, deixando a descoberto todas as saliências da sua estrutura de múmia.
A boca, ornada de grandes e perfeitos dentes brancos, entreabria-se, aspirando, num arroubamento, toda aquela felicidade de há tanto tempo ausente do seu coração de mãe infeliz.
-- “ E se ele voltar, que será de nós?
Quem poderá resistir ao ódio daquele homem?
-- …” Ouve, branca:
“ A velha erguera-se. Os olhos, ora se embaciavam, ora relampagueavam. Esteve um momento em silêncio.
--“ Se ele voltar? Sim. Talvez volte. O destino arrasta sempre os que devem. Ouve, branca:
Eu também tive filhos.
“ Fui mãe. Trazer no ventre uma criança; sofrer para a lançar no inferno da vida; dar-lhe o leite; vê-la crescer, desde um pequeno esboço de vida, até uma enérgica afirmação de força, tudo isto, pomba, é mais que Deus.
Toda a mulher que criou um filho é santa como a mãe de Jesus Cristo. A maternidade é que deu a Maria as asas com que subiu ao céu.
“ Pomba! Se uma criança me trespassar o coração com uma faca, eu beijo a criança antes de morrer. Ouve: Eu tive dois filhos. Um viste-o tu morrer ao mesmo tempo que o seu sangue latejava no teu ventre. Outro, vi-o acabar, além, naquelas malditas águas verdes.
Foi ali; olha: No meio desta maldita baía! Este mar engoliu-mo um dia, ao pôr-do-sol; e nessa tarde supus que o sol se tinha posto para nunca mais se levantar.
“ Eles eram dois, os meus filhos, Ambos fortes, alegres, bons.
“ Atiravam-se ao mar de faca nos dentes e iam estripar o assassino tubarão no meio da baía.
“ Para os ter, o rubor da vergonha avermelhou estas faces murchas.
Julga que o amor não seria esse meu por meus filhos. Depois – pensa, pomba no que isto tem de horrível! -- Depois os meus olhos nunca mais os viram. - (Continua)

(E-mail Artur Mendes)
                                              
  

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