Em 1957, já com 69 anos, Salazar é entrevistado por Serge Groussard, jornalista do Figaro. Entre outras perguntas, acerca do direito à greve o estadista responde: “Somos excessivamente pobres para nos permitirmos a esse luxo. Tanto mais que quando se reconhece o direito à greve admite-se que há uma incompatibilidade absoluta entre o interesse patronal e o interesse dos trabalhadores, e que a questão não poderá ser resolvida senão pelo recurso à força. É evidente que ganhará o mais forte, o que não significa que triunfe a justiça. Tanto que se rejeita o direito à greve deve admitir-se que os interesses patronais e os interesses dos trabalhadores são, no fim de contas, concordantes e não contraditórios; que deve ser também considerado um terceiro interesse que é o interesse social; e que uma organização deve ser erigida para permitir aos interesses divergentes definirem-se e conciliarem-se, reconhecendo-se o Estado como árbitro supremo. Nestas condições, o direito à greve pode, sem riscos, e com vantagens, deixar de ser reconhecido”. No termo da entrevista, concluiu: “Não governamos anjos no espaço, mas os homens sobre a terra, que são como são e não como alguns quereriam que fossem”.
Este depoimento de Salazar está em coerência absoluta com a globalidade do pensamento e da mentalidade de um ditador. No regime do Estado Novo, era impensável que o sindicalismo, mesmo que mitigado, entrasse no sector público, daí as palavras de Salazar se cingirem aos conflitos no sector privado, em relação aos quais, no seu entender, o Estado exerce o papel de “árbitro supremo”. Mas logo acrescenta que o “direito à greve pode, sem riscos, e com vantagens, deixar de ser reconhecido”. É como se o árbitro de um desafio de futebol decidisse pelo fim do jogo por dificuldade em julgar os lances duvidosos.
O ditador sabia que a greve, manipulada pelos sectores da esquerda radical (anarco-sindicalistas e comunistas), era uma perigosa ameaça à sua governação, trazendo de volta os tempos conturbados que levaram à revolução de 28 de Maio. Daí o movimento operário ter sido decapitado e desmantelado depois de 1926. Viria depois a Constituição de 1933, a qual, entre outras disposições, proibia o direito à greve. E em conformidade com as intenções expressas na lei fundamental, surge no mesmo ano o “Estatuto do Trabalho Nacional”, documento que, alegadamente, pretendia “fomentar a harmonia de classes”, diluindo a conflitualidade entre o capital e o trabalho e, desta maneira, tornando o sindicato um instrumento do corporativismo e, portanto, uma arma inofensiva, municiada com cartuchos de pólvora seca.
O 25 de Abril viria a restaurar o direito à greve, e os tempos que se seguiram terão dado razão aos saudosos do regime anterior, se nos lembrarmos da onda reivindicativa que, sem freio, pretendia restaurar instantaneamente todas as regalias sociais, atingindo o cúmulo no período gonçalvista. E foi assim que os cofres do Estado não tardaram a ficar exauridos, justificando a primeira intervenção do FMI em Portugal, em 1977, no governo de Mário Soares.
Com o andar dos anos, a nossa democracia foi amadurecendo e a sanha reivindicativa perdendo folgo, entrando em carris de maior contenção, ante a percepção de que os cofres do Estado não são um poço sem fundo. No entanto, houve, no pós-25 de Abril, regalias adquiridas no sector público, por via reivindicativa, que alteraram a relação de equivalência que antes havia entre certas classes sócioprofissionais e se pautava por um critério de equilíbrio e razoabilidade. Obteve mais quem gritou mais alto ou dispôs de arma reivindicativa mais ameaçadora.
Hoje, um pouco por toda a Europa, as reivindicações sindicais praticamente perderam expressão no sector privado, reflexo dos novos tempos que regulam e controlam as rédeas das economias nacionais. As pessoas temem a perda dos seus postos de trabalho e quase que se auto-excluem da luta pelos seus direitos, vergados à chantagem sub-reptícia exercida pelo patronato. Em Portugal, as greves só sobrevivem no sector público, com os Transportes à cabeça, o que desde logo suscita ilações de ordem moral: a greve é uma regalia dos que têm os postos de trabalho assegurados.
Assim se compreende que a Direita procure privatizar tudo.
Salazar é que resolveu estes problemas de uma assentada, na clausura do seu labirinto, avesso a qualquer ideia de aceitar as regras do jogo democrático.
Tomar, 11 de Dezembro de 2015
Adriano Miranda Lima
Parece que temas deste género incomodam, a avaliar pela sistemática ausência de comentadores. Aqui como em outras situações.
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