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terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

[8869] - CABO VERDE E O RACISMO...

Racismo.cv no jornal Público
José Almada Dias

“Ninguém tem mais ou menos chances de ascensão social ou profissional ou política por ter a pele mais clara ou mais escura.”
(António Leão Correia e Silva)

Subscrevo na íntegra estas palavras e acho que a maioria dos cabo-verdianos, que, felizmente, ainda não se deixaram enredar nas malhas da ideologia, assim pensam.
Mas alguns dos entrevistados da reportagem do jornal Público não concordam. Pintaram Cabo Verde como um país onde há racismo, foi-se até buscar o cliché, do tempo antes da independência, de que as pessoas de Santiago são descriminadas por serem mais escuras. Ficou por clarificar porque razão as pessoas escuras das outras ilhas não são descriminadas...
Devo dizer que não gosto da forma como a palavra ‘racismo’ é normalmente aplicada, pela simples razão de que só existe uma raça, a humana. Mas alinhando no lugar-comum, ocorrem-me as seguintes perguntas: existe racismo em Cabo Verde? Se sim, de que formas ele se manifesta?
Porque quando existe um fenómeno como o racismo, é expectável que possa ser constatado e provado, para poder ser criminalizado e combatido, tendo em conta a sua gravidade. Não podemos, portanto, falar de racismo baseado em conceitos subjectivos ao gosto de cada um.
Vamos então perguntar: alguém em Cabo Verde é impedido de entrar nalgum local, público ou privado, por causa da cor da pele? Claramente, não.
É negada educação, saúde ou qualquer direito fundamental a qualquer criança ou adulto por ser “mais escurinho” (ou dever-se-á dizer “menos clarinho”...)? Quando se entra numa sala de aulas, do ensino básico às universidades, há predomínio de pessoas mais claras, como no Brasil ou noutros países da América Latina? Pelo contrário, em Cabo Verde, o predomínio é de mais escurinhos. Deve isso ser interpretado como racismo para com os mais clarinhos?! Teremos que criar quotas para os mais clarinhos??
Uma vez que, desde a nossa independência, o Presidente da República é quem representa a nossa nação, olhemos para o histórico das “cores” dos nossos presidentes. Aristides Pereira, António Mascarenhas Monteiro (ambos bastante escurinhos), Pedro Pires (a tender para o claro) e Jorge Carlos Fonseca (clarinho). Se a nação berdiana é racista e dá prioridade aos mais clarinhos, como foi possível termos como primeiro Presidente Aristides Pereira? Que ainda por cima só detinha um diploma do 5º ano (hoje seria 9º) dos liceus. Como foi possível um escurinho chegar tão longe, numa terra de tanta gente com diplomas universitários?
E o seu sucessor, eleito democraticamente por voto directo pelos eleitores cabo-verdianos?! O povo não deveria ter votado num mais clarinho? E que não fosse de Santiago?!
No meio de tantas diatribes absurdas, uma das que me tiraram do sério nos depoimentos foi a afirmação de que até hoje os cabo-verdianos, inclusive os jovens, não se identificam como africanos devido a uma narrativa instituída pela administração portuguesa.
Querer ainda atribuir ao sistema colonial português as culpas por uma dissociação da identidade africana é uma desculpa de mau pagador, semelhante à tentativa de atribuir culpas às ex-potências coloniais europeias pelo atraso, pela miséria, pela corrupção, etc., que grassa hoje em África. Já aqui demonstrámos em algumas crónicas, com números, como vários países africanos estão hoje piores do que na altura da independência, e como a maioria, ricos em recursos naturais, tem tido crescimentos anémicos devido às más políticas dos seus dirigentes.
É por isso um absurdo pensar que um jovem cabo-verdiano hoje, com acesso a telejornais, internet, etc., não se quer identificar com o continente africano por culpa de um sistema colonial que acabou há mais de 40 anos e que ele nem vivenciou! Haja paciência!!
A verdadeira razão é que ninguém quer ser conotado com miséria, atraso, corrupção, guerras, ausência de direitos humanos, em particular, das mulheres, de crianças escravas, etc. Esta é a imagem que, infelizmente, a África Subsaariana projecta hoje no mundo, e da qual os africanos são os principais culpados. E é uma imagem baseada na realidade.
Organizei um debate com os meus alunos do 4º ano de Ciência Política a propósito da reportagem noPúblico, ainda antes de escrever estas crónicas (para evitar influenciá-los).
Pedi-lhes que analisassem a forma como os emigrantes provenientes dos países da costa ocidental africana são tratados por cá. Todo o mundo achou que são descriminados por serem africanos e negros. Perguntei-lhes se não seria por serem emigrantes de condição social baixa, sem instrução. Teimaram que não e que se fosse um emigrante branco analfabeto seria mais bem tratado. Mas quando os coloquei perante o mesmo cenário com emigrantes negros brasileiros ou americanos, aí já hesitaram e acabaram por responder que talvez fossem mais bem tratados.
Já vi esta situação ocorrer em Portugal e noutras paragens, em vários ambientes, inclusive no desporto. Um negro vindo de África é realmente descriminado, o que já não acontece com um negro brasileiro ou americano. É assim em todo o lado, e em Cabo Verde não é excepção. Ou seja, no fundo, o problema maior não é a cor da pele, mas a rejeição do que a África Subsariana representa aos olhos do mundo.
Acabei por lhes perguntar se caso tivessem, forçosamente, que emigrar por falta de perspectivas, para onde iriam. Acham que algum disse que iria para África?! Mesmo os que, no início, se mostravam grandes defensores do continente, quando postos perante a questão, acabaram por ser apanhados desprevenidos. Quando lhes perguntei: “Afinal, são africanistas e não querem ir para África? Há aqui no continente boas oportunidades de emprego, boas universidades, etc.”. Um ou outro ainda tentou dourar a pílula, mas já era tarde, já tinham dito o que realmente lhes ia na alma, livres de condicionalismos ideológicos e do politicamente correcto.
Fizeram como todos os meus amigos africanistas: a maioria nunca pisou o continente, não planeia ir lá de férias, enviar os filhos para lá estudar nem pensar, enfim, o “nosso” africanismo não passa de discurso motivado pela ideologia.
Nos dias de hoje, é chique ser africanista, está na moda novamente. Eu vou manter-me fora de moda, porque não sou africanista nem europeísta, sou um crioulo cabo-verdiano atlântico e o meu continente é o mundo crioulo.
Por isso, afirmo (e não sou o único) que os problemas identitários que a nação cabo-verdiana tem hoje são fruto da ideologia africanista que entrou no país no pós-independência.
Fiz outro exercício com os meus alunos. “Se eu disser no meio da rua que gosto só de mulheres loiras de olhos azuis, toda a gente vai gritar que é racismo. Mas se, pelo contrário, eu disser que gosto só de mulheres negras de cabelo carapinha, aí toda a gente vai achar que sou um tipo porreiro”, passe a expressão. No meu caso, ainda mais porreiro, por ser clarinho, e fico assim ilibado desse “crime” de ter nascido com a cor da minha mãe e não com a do meu pai! Todos concordaram que é assim mesmo.
Isto, sim, é preconceito racial introduzido, deliberadamente, na sociedade cabo-verdiana, por motivos ideológicos.
Mas o pior é que há um reviver irresponsável destas imposições de índole autoritária. Já ouvi afirmações de que “os nossos empresários têm que investir em África porque somos africanos”. Ouvi até um jovem deputado a defender na televisão nacional que o Governo devia tomar medidas que obrigassem os empresários nacionais a investir no continente!! Tudo isto é grave e tem que ser combatido.
Esta tentativa de imposição aos empresários, de índole claramente totalitária, não será ela própria racista?
Só por aqui vemos o desnorte de toda uma nação, a quem se tentou impor, por exemplo, o “pano di terra”, porque lembra África. No tempo da independência, também se falou em mudar de hábitos e passar a comer com as mãos. Felizmente, o povo não vai nessas conversas…
Todas as sociedades possuem elites que tentam através das gerações manter-se na zona do poder, seja ele político, financeiro ou mesmo a nível do conhecimento. Lembro-me do meu tempo de estudante em Portugal, de alguns colegas portugueses de esquerda a vociferarem contra o facto das “grandes famílias”, os Mello, os Espírito Santo, etc., terem tomado conta novamente das grandes empresas do país aquando do processo de privatizações.
Em Cabo Verde, aconteceu que no processo de formação da sociedade, entre as elites e as classes mais desfavorecidas, havia um outro elemento que é a cor da pele, fruto da combinação inicial de povos que colonizaram as ilhas. Uns com poder, outros na altura escravos, como todas as sociedades do mundo já tiveram, porque o fenómeno da escravatura existiu sempre em todo o mundo, e em todos os tempos. Os portugueses e espanhóis foram escravizados pelos mouros, antes de eles próprios se libertarem e passarem à conquista de novas terras, escravizando outros povos. Todos os povos do mundo foram escravos e escravizaram. Em África, a escravatura era uma realidade antiga e comum, muito antes da chegada dos europeus.
De modo que não percebo esta ênfase em afirmar que Cabo Verde foi uma sociedade escravocrata. Qual a sociedade neste planeta que não o foi?
A questão é que o fenómeno da escravatura por cá é relativamente recente, como o foi logo de seguida em todas as sociedades crioulas do Novo Mundo (não esquecer que ainda existe escravatura em África e noutras paragens).
Nessas sociedades, a única diferença é o facto de que as classes mais desfavorecidas eram constituídas por seres humanos com pele mais escura do que os seus irmãos humanos das elites.
E no meio desse mundo crioulo, o caso de Cabo Verde tem especificidades próprias, como afirma o historiador Correia e Silva na reportagem do Público. Aqui, devido à falta de economia, deixou de haver repovoamento de europeus, o que fez com que os mulatos ascendessem rapidamente ao poder logo a partir do século XVII. Ou seja, em Cabo Verde, dois séculos depois do início da colonização, já acontecia a partilha de poder independente da cor da pele, fenómeno que nos restantes países crioulos só agora está a começar a acontecer. E nós a falarmos de racismo em pleno século XXI, três séculos depois!!!
Significa que, para além de sermos o primeiro país crioulo e mestiço do pós-Descobrimentos, fomos também os primeiros a começar a resolver as diferenças entre senhores e escravos, a encurtar a distância entre os detentores do poder e os mais desfavorecidos, ultrapassando a questão da cor da pele.
Isso, sim, é que merece ser realçado. Não somos uma sociedade perfeita, porque milagres não acontecem de um dia para o outro, mas somos, certamente, um exemplo para o mundo, somos a pátria da crioulidade e da mestiçagem.
Por isso, ao invés de estarmos a denegrir a imagem do nosso país, trazendo problemas de outras paragens, deveríamos estar a cultivar cada dia mais o que temos de bom. Aqui ninguém tem cor e só nos apercebemos de que a nossa pele tem cor quando viajamos para fora deste paraíso crioulo.
Num planeta que se torna cada dia mais mestiço, uma tendência imparável, devíamos estar a ensinar ao mundo como conviver com esse fenómeno. E dizer-lhes, venham cá ver o vosso futuro, daqui a uns anos serão como nós, uma nação arco-íris, pioneira de um planeta que deixou, felizmente, de ser preto e branco.
Continuaremos a desenvolver este tema na próxima crónica.
PS: desejo a todos um alegre e divertido Carnaval, a minha festa preferida. O Carnaval é a festa por excelência dos povos crioulos deste mundo. Nestes dias, de Buenos Aires a Nova Orleães, passando pelo Rio de Janeiro e pelo Mindelo, o mundo crioulo estará a festejar a sua festa predilecta, num êxtase onde a inversão das regras sociais é o lema. É assim, desde que as mulheres festejavam as festas dionisíacas na Grécia há milénios. Por cá, os Mandingas já animam a festa todos os domingos. Eu estarei, como é hábito, ao lado da batucada, com o coração crioulo a marcar o ritmo dos bombos e com as minhas costelas africanas a dançarem ao ritmo africano desta maravilhosa festa crioula.
O resto é ideologia…

segunda, 01 fevereiro 2016 06:00
Publicado em Opinião

2 comentários:

  1. Excelente trabalho do professor, pessoa muito inbteressado pela sua terra. Aplaudo como tenho feito com demais artigos da sua lavra. Se cada um fizesse metade disto...

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  2. Como já fiz muitos comentários sobre este assunto, apetece-me pedir para encerrarmos definitivamente este dossier da reportagem do jornal Público. Há coisas mais importantes a debater em e por Cabo Verde.

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