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segunda-feira, 7 de março de 2016

[8984] - RECONCEITUAR O ESTADO...


É caso para relembrar o provérbio que diz que de boas intenções está o inferno cheio. O José Maria Neves esteve 15 anos à frente dos destinos do país e só agora se apercebeu da necessidade de “reconceituar o Estado cabo-verdiano”? A sua afirmação parece mais um argumento dilatório contra qualquer ideia de regionalizar a administração do país do que a expressão assumida de uma vontade política. Caso contrário, há muito que o governo do PAICV teria agarrado esse boi pelos cornos


A expectativa dos que me conhecem e sabem que a problemática da Regionalização tem sido o centro do discurso do nosso grupo (Grupo de Reflexão sobre Regionalização), talvez fosse de ver essa palavra – Regionalização – pontuada no título e não outra, como elemento central e condicionador do processo de reforma que almejamos ver empreendida em Cabo Verde. Mas não é por acaso que escolhi o título. É que admito que talvez tenha passado, inadvertidamente, para a opinião pública a ideia de que a regionalização é uma peça desligada de um leque vastíssimo de reformas, como se fosse um objectivo a justificar-se por si só, materializando o princípio e o fim do processo de transformação radical das estruturas do Estado cabo-verdiano.

É certo que a palavra Regionalização, já pela sua carga semântica, enche os olhos e os ouvidos por traduzir uma alteração profunda no sistema político-organizativo do país. Mas, por isso mesmo, convém ver a questão com maior latitude. O que é preciso mudar em Cabo Verde é algo muito sério e exigente porque implica revolver os alicerces de todo o edifício do Estado, substituindo as suas pedras, no mínimo rectificando a sua composição e ajustamento, após o que será imprescindível mudar os pilares de sustentação de todo o conjunto estrutural. Porque ninguém ignora que o actual edifício está caduco, em iminência de ruína, ameaçando derrocada. Isto faz-me lembrar as casas senhoriais antigas e herdadas por gerações que não as podem mais manter sustentáveis, o que em muitos casos obriga a recorrer a venda a quem mais pode, ou então a uma demolição para em seu lugar se erigir algo mais diminuto mas com garantias de fiabilidade e segurança na sua habitabilidade.

Esta minha conversa poderia referenciar alguns discursos e intervenções mediáticas de figuras políticas, e não deixo de o fazer por ser oportuno. Comecemos então pelo ainda primeiro-ministro, José Maria Neves. Por ocasião da intitulada cimeira da regionalização ordenada no ano passado pelo governo, o primeiro-ministro não se coibiu de, uma vez mais, manifestar publicamente as suas reservas, dele e do seu partido, acerca da viabilidade e oportunidade da reforma em causa. Um dos argumentos por ele invocado é que ela vai agravar ainda mais os custos da sustentação do já pesado aparelho do Estado. Desde logo, transparece do seu pensamento que a regionalização será algo que se acrescenta à estrutura organizativa do Estado, como se fosse uma excrescência. Procurando uma imagem literariamente ilustrativa, diria que para os cépticos da regionalização ela será uma espécie de cereja que se coloca em cima do bolo, não um ingrediente natural e valorizador do conjunto, de modo que a sua serventia será mais para embelezar e entreter a vista do que para satisfazer o paladar e a degustação.

Visto o problema com esta superficialidade, poderia dizer que o José Maria Neves está em parte com a razão. Sim, só em parte, porque ele não quer gastar dinheiro com a cereja mas não se mostra resoluto a opor-se ao tamanho desmesurado e disforme do bolo, aparentemente não se importando muito que ele permaneça sobredimensionado às necessidades e ainda por cima com a massa já azeda e imprópria para consumo. E por isso entende que é inútil colocar essa cereja, porém insistindo em continuar a “embuchar-nos” com doses consecutivas do bolo intragável.

O actual presidente do MpD, auspiciando formar o próximo governo depois das eleições legislativas, promete avançar com o processo de regionalização, conforme o que foi noticiado pelo jornal Cabo Verde Directo: “no recente debate realizado na TCV e na RCV, que juntou os líderes do MpD e da UCID para apresentarem as suas propostas ao eleitorado, Ulisses Correia e Silva reiterou a vontade de o seu partido em levar ao Parlamento o projecto da regionalização ainda no primeiro ano da próxima legislatura, e assumiu que São Vicente será a primeira ilha a avançar, já que, segundo o presidente do MpD, está preparada para receber a regionalização”.

Poderá dizer-se que o presidente do MpD traz uma lufada de esperança aos defensores da regionalização? Sim, mas só em parte e vamos ver porquê. O Ulisses Correia e Silva afirma que vai propor ao Parlamento a confecção dessa cereja, dando a impressão de que não hesitará em encimá-la no bolo. Mas em momento algum parece interrogar-se sobre esse monstruoso bolo que vai acolher a cereja, indiferente ao seu tamanho e estado de conservação. Aí poderá ter razão quem questione se será comportável manter um bolo enorme e fora de prazo, e ainda por cima adicionar-lhe uma cereja que, queira-se ou não, vai ter também os seus custos. É que o presidente do MpD prometeu um governo regional a ilhas que visitou, nomeadamente S. Vicente e S. Antão, sem no entanto explicar para já as suas implicações sistémicas ou o modus operandi dessa transformação estrutural. Mais, preconiza o modelo região-ilha, mas fá-lo sem um prévio estudo e parecendo não considerar que a decisão deverá requerer um consenso político alargado.

Não sei ao certo a opinião exacta do líder da UCID quando, naquele mesmo debate, e continuando a citar ipsis verbis o Cabo Verde Directo, sustentou: “tendo em atenção a noção que a nossa população tem da regionalização, ainda não há condições para que o País possa dar este salto já na próxima legislatura”, mas adiantando que “a UCID, quando foi fundada em 1978, nos seus estatutos, já previa que uma ilha seria uma região política”, pelo que defende “de forma muito clara a regionalização política” para “libertar este potencial das ilhas para que o povo das ilhas de Santo Antão à Brava possa ter a capacidade de fazer desenvolver a economia, as questões sociais, a agricultura, a pesca, a cultura, o desporto, a saúde, de uma forma que acharem por bem”. Mas adiantou que não é para já, pois caso contrário será uma “aventura”.

Bem, fica-se assim com a leve impressão de que o presidente da UCID é o único que diagnostica o estado de conservação desse bolo, embora prefira subentendê-lo ou rodeá-lo de reticências em vez de o denunciar claramente à puridade? Pois, adverte que para já não convém mexer nele, que será arriscada a sua deglutição, evitando, no entanto, dizer o que fazer para o tornar comestível e apropriado para a saúde pública. Limita-se a dizer que será uma “aventura”. Bem, em todo o caso não creio que haja razão para crucificar o António Monteiro por heresia anti-regionalização. Talvez seja mais de desconfiar da ligeireza com que ele lança o aviso e se põe ao fresco. No mínimo, pode-se censurar o seu excesso de atitude cautelar, tanto mais tratando-se de um partido que se gaba de ter a regionalização assinalada com todas as letras nos seus estatutos.

O que é uma verdade incontestável é que a introdução de um figurino regional no país não me parece exequível sem se mexer profundamente em todo o aparelho do Estado, desde a sua composição e localização geográfica até à reconversão das suas estruturas orgânicas e institucionais. Aliás, foi o próprio José Maria Neves que afirmou, durante a aludida cimeira sobre a regionalização, que as despesas de uma regionalização iriam agravar a sustentabilidade do Estado, que absorve a maior parte dos recursos nacionais, travando a dinâmica do desenvolvimento, pelo que é preciso “reconceituar o Estado cabo-verdiano”.

Bem, é caso para relembrar o provérbio que diz que de boas intenções está o inferno cheio. O José Maria Neves esteve 15 anos à frente dos destinos do país e só agora se apercebeu da necessidade de “reconceituar o Estado cabo-verdiano”? A sua afirmação parece mais um argumento dilatório contra qualquer ideia de regionalizar a administração do país do que a expressão assumida de uma vontade política. Caso contrário, há muito que o governo do PAICV teria agarrado esse boi pelos cornos, porque não faltaram sinais inquietantes do peso desmesurado do Estado. Mas o que é irónico é o primeiro-ministro ter na mesma ocasião lembrado que “temos de instalar o Tribunal Constitucional, a Comissão Nacional de Protecção de Dados, a Provedoria de Justiça, devemos ter uma Comissão Nacional de Eleições a funcionar, uma Agência Nacional de Regulação da Comunicação Social”. Ou seja, em vez de reconfigurar o Estado, cauciona o continuum do seu crescimento, confessando deste modo a sua impotência política ou o seu conformismo face a uma realidade que pode interessar ao(s) aparelho(s) partidário(s) mas nunca à colectividade nacional.

Quanto aos partidos da oposição, não é de crer que venha daí uma percepção muito diferente sobre esta problemática. Se o MpD está a utilizar a regionalização como instrumento da sua estratégia eleitoral, apadrinhando-a sem encaixar o processo num Estado profundamente reformado, reajustado e emagrecido no seu núcleo central, poderá conduzir-nos à própria denegação da ideia de governo regional. Uma solução faz-de-conta só para agradar ao eleitorado das ilhas periféricas é tudo o que os regionalistas certamente não desejam. Quanto à UCID, é bom que o seu presidente seja mais claro e assertivo na expressão do seu pensamento sobre esta matéria. Não pode a sua pouca relevância eleitoral inibir-lhe o verbo ou condicionar-lhe a intenção, até porque a escassa geografia da sua implantação coincide mais com as ilhas do Barlavento que reclamam uma reforma do Estado.

Veremos mais tarde a dimensão e a natureza da reforma que precisamos ou, pegando nas palavras do primeiro-ministro, “a reconceituação do Estado cabo-verdiano”. (in abo Verde Direto)

Tomar, 5 de Março de 2014

Adriano Miranda Lima | limadri64@gmail.com
[escrito com a anterior ortografia da língua portuguesa]

4 comentários:

  1. "Água mole em pedra dura..." Têm sido muitas as vozes a defenderem a questão da regionalização que finalmente alguém parece ter ouvido e percebido a importância da regionalização no desenvolvimento das ilhas. Esperemos que sim! Que o líder do MPD leve o assunto ao Parlamento e se a promessa é para ser logo no primeiro ano de governação, ainda melhor.
    Abraços

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  2. Raras vezes comento os escritos do Adriano, modelo cívico, e portando penso ser dos primeiros leitores a abrir os trabalhos destes conterrâneo que nunca tem uma desculpa para quanto é de interesse da terra onde nasceu e onde fez os seus estudos liceais antes de optar para outra vida como um filho de emigrante.
    Não comento tão regularmente porque sinto-me "embaraçado" de nada encontrar para (des)dizer na medida em que sempre nos apresenta trabalhos ricos que nos empolgam, feitos como se tratasse de notas musicais de sinfonia desenhadas na pauta de grande dimensão.
    Na pequenês das possibilidades, mas com engenho e arte penso, ter este membro da Diáspora vindo a contribuir no esclarecimento de muita coisa, isso para grande parcela de leitores desejosos de dar um apoio para um Cabo Verde Melhor.





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  3. Aqui está " Magister Dixit" temos aqui reflexão profunda.
    Adriano remata tudo com este Super excelente artigo, certeiro 'touché la mouche' no coração do Sistema.
    O amigo Adriano toca magistralmente em todos os pontos da problemática da Regionalização com este curto artigo . Pois de nada serve esta reforma se não houver a Reforma Magna do Estado, e aí é que está o Busilis do problema, e é disso que o Paicv e alguns MPD não querem 'nem pintod um pared'. Para os leninistas cabo-verdianos, habituados ao poder total e a manipular a partir da Praia tudo e todos até a própria conciencia das pessoas, invocar menos estado e devolver os estado ao poder local é invocar pesadelos. Com efeito de nada serve esta regionalização que sérá, usando as imagética do Adriano, uma cereja em cima de um bolo mal feito e mal cozido. Este artigo deve ser dissiminado profundamente em CV.
    Brevemente publicarei o meu artigo onde voltarei à carga discutindo a mesma problemática aqui apresentada e respondendo à minha maneira algumas questões levantadas no debate a que refere o artigo do Adriano.

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  4. A mim o que me parece é que os políticos estão com medo dar o passo ou não querem mesmo a mudança, mas o eleitorado têm-nos contra a parede. Acredito que estão a somente a acenar ao eleitorado com a regionalização, para ganhar votos, mas no fundo não vai haver nada para ninguém.
    Daí que um promete, mas se ganhar vai submeter o prometido à aprovação do parlamento (se calhar a contar com um chumbo). Outro faz-se de “goloso infastiose” diz que concorda mas “não gosta de aventuras” (imaginem só, uma aventura prevista nos seus estatutos, desde 1978,) e não ousa por enquanto levá-la avante. Um terceiro não alinha mas faz saber que a regionalização será vista “só por um canudo”.
    Ora, se o parlamento não aprovar a colocação da cereja, o outro não se meter em aventuras e o terceiro nem quer falar do assunto estou a ver que o bolo bolorento, que só nos causa dores de barriga, vai continuar a ser servido “até chá vrá cafe”.

    Matrixx

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