A quem é a favor da realidade, aconselho umas visitas sistemáticas aos familiares de Monte Tchota. Não agora. Daqui a uns meses, quando o circo tiver levantado arraiais e a poeira tiver assentado. Quando a rotina se instalar e sobrar, para sempre, um lugar à mesa. Quando as datas de aniversário, Natal, Fim de ano, Páscoa e afins se assinalarem e faltar para sempre alguém para celebrar
Tal como o previsto, criou-se um circo mediático à volta do que aconteceu em Monte Tchota, culminando com a divulgação das fotos das vítimas. Como se não bastasse, o argumento usado para justificar essa divulgação é, simplesmente, de bradar aos céus. Diz que as pessoas precisam de conhecer a realidade.
Ora pois aqui sinto que devo fazer uma pausa. Avisar os leitores que nas próximas linhas, não vou falar como jornalista profissional desde 2001, com carteira profissional portuguesa nº 6375, válida até Julho de 2017, nem como docente universitária há três anos num curso de Jornalismo.
Vou ainda aproveitar, desde já, para pedir desculpas ao meu marido e aos meus pais, que fizeram um esforço hercúleo para me educar dentro dos mais rigorosos padrões da moral, assim como me desculpo de antemão aos meus familiares próximos, amigos e alunos, que sabem que não sou dada a excessos linguísticos.
Mas dizia eu que, agora, vou falar como uma simples filha, mãe, esposa, sobrinha, tia, prima e amiga e dirigir umas palavrinhas a quem, a troco da defesa da realidade, resolveu publicar as fotografias das vítimas de Monte Tchota: Vão bardamerda!
É que nem me vou dar ao trabalho de aprofundar algumas teorias da comunicação, apoiadas em variados estudos, que defendem que a exposição a imagens/fotos violentas, em vez de conseguir alertar, muitas vezes tem o efeito de dessensibilizar. Por isso é que alguns canais televisivos optaram por não divulgar imagens chocantes, por isso algumas campanhas publicitárias de choque só são usadas por um tempo limitado. Quem é exposto à violência, torna-se imune à mesma. É um mecanismo de defesa usado por exemplo, e pasme-se, pelos soldados, até pelos jornalistas. Mas também em vítimas de violência doméstica. Repito, quem é exposto à violência, torna-se imune à mesma, e até acrescento, tem mais probabilidade em tornar-se violento.
Nem sequer vou falar de algo que não se aprende nas salas de aula, nem sequer nos anos de profissão, que são os valores, a ética, o respeito pela dignidade humana.
A quem é a favor da realidade, aconselho umas visitas sistemáticas aos familiares de Monte Tchota. Não agora. Daqui a uns meses, quando o circo tiver levantado arraiais e a poeira tiver assentado. Quando a rotina se instalar e sobrar, para sempre, um lugar à mesa. Quando as datas de aniversário, Natal, Fim de ano, Páscoa e afins se assinalarem e faltar para sempre alguém para celebrar. Quando os filhos daquelas vítimas começarem a perguntar pelos pais, quando as viúvas tentarem adormecer à noite numa cama vazia, quando as mães quiserem ouvir a voz dos filhos. Essa é que é a realidade que todos devem conhecer, essa é que é a realidade que deve ser evitada.
Não ficaram convencidos? Então atentem-se noutra realidade que, com toda a desinformação criada, acabou por passar despercebida. Nada justifica o que aconteceu. Mas quando surgiram as primeiras explicações para o ocorrido, os maus tratos, pouco se falou sobre o assunto.
E o certo é que em Cabo Verde, e um pouco por todo o mundo, existem pessoas que são diariamente humilhadas, torturadas e massacradas psicologicamente (e até fisicamente) no local de trabalho. Outras mesmo em casa, junto daqueles que as deviam defender e proteger.
Esta é que é uma realidade que merece ser conhecida. Porque todos nós estamos rodeados de vítimas silenciosas. Que escondem o seu drama, fingem, calam. Calam. Calam. Calam. Até que um dia se fazem ouvir. Normalmente da pior maneira.
Diz que hoje se assinala o Dia Internacional da Liberdade da Imprensa. Que sirva para se celebrar a liberdade e não a libertinagem. (in Cabo Verde Direto)
Marisa de Carvalho | m_a_carvalho@yahoo.com
Dona Marisa de Carvalho, pergunta no seu artigo se o leitor ficou convencido e desde já lhe digo que a minha anuência é total. E mais, acompanho-a em uníssono nesse “Bardamerda” justa e oportunamente proferido. Que falta de sensibilidade humana expor fotografias das vítimas, só para satisfazer o olhar vampírico de uns quantos “libertinos”!
ResponderEliminarA comunicação social é hoje em dia o espelho do nosso retrocesso social. Hoje, importa mais a competição e o lucro que o interesse em informar e formar. A senhora, que é professora de jornalismo, dir-me-á o que está a falhar no ensino dessa nobre profissão. Ou se ela não estará a ser vítima precisamente da circunstância de ser ensinada. Um jornalista não se faz só por se sentar no banco duma escola para ouvir desbobinar um conjunto de matérias. A aptidão para jornalista é algo de inato, ou se é ou não. Os grandes jornalistas que conheço e fizeram história não se formaram em nenhuma escola profissional, entraram na profissão como se entra para um sacerdócio e subiram todos os degraus da longa escada dessa vida em constante aprendizagem e apuro da sua consciência de seres livres e criteriosos.
Sobre a imunidade à violência, diz: “um mecanismo de defesa usado por exemplo, e pasme-se, pelos soldados, até pelos jornalistas”.
Como sou soldado, digo-lhe que não se pode “pasmar” com a sua imunidade à violência. É uma necessidade imposta pela profissão, sem o que não seria possível o seu exercício. Mas não pense que essa imunidade é sinónimo de insensibilidade humana. Temporariamente a mente adapta-se à visão e ao cheiro da morte, mas o espírito fica para sempre marcado.
Quanto ao jornalista, a frieza e o distanciamento que a transmissão da notícia lhe exige, não pode abafar-lhe o sentido do seu próprio critério e o respeito pela sensibilidade do próximo.
Quanto a estes fenómenos que estão a acontecer na nossa terra, fico de facto pasmado, porque enquanto vivi em Cabo Verde (até aos 19 anos, e já vou com 72) eram simplesmente impensáveis. Mas, enfim, está a acontecer por todo este mundo, que a globalização das comunicações encarrega-se de tornar quase um quintal.
Gostei imenso de ler o que escreveu. Como sempre.
Bravo !
ResponderEliminarNinguém pode ignorar o despudor de alguns que se vê na comunicação social. Longe de mim querer atacar seja quem for mas recomendo aos que quiserem seriedade, que façam uma "Terapia Social" inventada nos anos 80 do século passado por Charles Brjzman. A terapia é um método transdisciplinar de intervenção e de formação. Os seus três objectivos principais são a psicoterapia do lugar social, a educação à vida democrática e a emergência da inteligência colectiva para se resolver os problemas de sociedade mais complexos.
Não se trata de curar as pessoas mas de melhorar as relações sociais e de educar para a via democràtia, desenvolvendo o espírito critico, a capacidade ao conflito sem violência, e a responsabilidade individual.
Ver, escutar, não deformar, não ridiculisar e ir até ao fim.
Valdemar Pereira
(bibl.cons. Charles Rojzman)