Manuel Brito-Semedo |
A morna “Doce Guerra”, do compositor Antero Simas (Praia, n. 1952) é uma exaltação da especificidade das ilhas e suas gentes, ao mesmo tempo que é um hino e uma glorificação da identidade cultural do povo de Cabo Verde.
Ai naquel dia di festa
‘M qu’rê colá sanjom na Picos
‘M qu’rê batuco
Na rebera de Julião
Vulcão na praia de Santa Maria
Vale di Paúl na Boavista
Morna de nhô Eugénio
Na nhô San Nicolau.
– Antero Simas
Formula-se a hipótese de que as características das gentes das ilhas são determinadas pelas variáveis históricas, geográficas, económicos e sociais.
Nesse caso, destacam-se a época e o tipo de povoamento, que terão muito a ver com o grau da sua mestiçagem cultural; o relevo ou a orografia do seu espaço ou ilha, se é montanhosa ou plana, interior ou litoral, determinando a sua forma de percepcionar o mundo; e o tipo de actividade económica desenvolvida terá motivado a sua abertura ao exterior, fazendo-a mais ou menos cosmopolita.
Tomemos como exemplo as gentes da ilha de Santiago (ilha maior do arquipélago, povoamento do século XV, cuja economia sempre foi a agricultura de sequeiro) versus as gentes de São Vicente (ilha do Porto Grande, com povoamento de finais do século XVIII, com uma economia girando à volta da baía) e as gentes de Santo Antão (segunda maior ilha, montanhosa, com povoamento do século XVI, tendo como economia principal a agricultura de regadio) versus as gentes do Sal (uma das menores ilhas habitadas, totalmente plana, povoamento do século XIX, cuja economia sempre girou à volta das salinas e do aeroporto e, mais recentemente, do turismo).
Só assim se poderá explicar que em Cabo Verde, ao lado de costumes e hábitos de importação europeia, se encontrem formas sociais, costumes, crenças e processos africanos. Isso advém-lhe da sua mista realidade – a africana e a europeia – com características diversas e cheias de contrastes, que dá ao cabo-verdiano uma identidade própria, visível, por exemplo, nos ritos de passagem.
Desde as sociedades primitivas, determinados momentos na vida de seus membros são marcados por cerimónias especiais, conhecidas como ritos de iniciação ou ritos de passagem, que são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio da sua comunidade.
Esses ritos de passagem são realizados de diversas formas, dependendo da situação celebrada, que vão de rituais místicos ou religiosos, passando por assinatura de papéis, às praxes. Os mais comuns são os ritos ligados a nascimentos, formaturas, casamentos e morte.
Estas cerimónias, mais do que representarem uma transição particular para o indivíduo, representam igualmente a sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual está inserido, tendo, portanto, tanto o cunho individual quanto o colectivo.
Nos ritos de passagem das meninas, que decorrem de aspectos biológicos, assinala-se a primeira menstruação, que marca a sua passagem da infância para a adolescência e a perda da virgindade, com o tirar dos “três-vinténs”, como sói dizer-se, o seu iniciar na vida adulta. É por demais evidente que isso acontece em ambientes culturais e antropológicos tornando-os específicos de uma dada sociedade e ou comunidade.
Aos 40 anos a mulher tem um novo rito de passagem, que é o da sua transição para a meia-idade. É aqui que bate o ponto.
Há já algum tempo que me intriga não conseguir uma explicação e o significado do costume de as mulheres, sobretudo em São Vicente, “porem capacete”, no sentido real do termo, para celebrar os seus 40 anos. Cheguei, inclusivamente, a ser desafiado a dar esse esclarecimento.
Encostei-me à Esquina do Tempo e as informações conseguidas dão-nos conta que, por detrás dessa praxe, que já se está a tornar numa tradição, há um estória verdadeira, burlesca e com alguma malandrice pelo meio e “tirada” em cantiga, acontecida com uma menina da Boa Vista.
Para as cabo-verdianas nascidas em 1976
Fidjinha m’nina nova
casá q’ ôme de 80 óne.
Oi, ôme, Nhô Antôn Dóia,
bocê tró-m êss capacete,
capacete de 40 óne.
Bocê tró-m êss capacete,
capacete de 40 óne.
– Cantiga Popular
Nos anos cinquenta, Fidjinha, uma rapariga da Boa Vista a viver em São Vicente, a despeito de ter tido namorado, chega aos 40 anos virgem e casa-se com Nhô Antôn Dóia, um capitão de cabotagem da Boa Vista, homem dos seus 80 anos. A virgindade, o “capacete”, aos 40 anos é caso raro na sociedade cabo-verdiana, que é muito erotizada, mesmo nessa época dos anos de 1950.
No contentamento e na ânsia do casamento, Fidjinha pede ao marido para lhe tirar o “capacete” de 40 anos – Oi, ôme, Nhô Antôn Dóia, / bocê tró-m esse capacete, /capacete de 40 óne. Sabida a estória, isso torna-se motivo de dichote em São Vicente e é posto na bóca de viola, que logo faz sucesso.
Retomando o fio à meada. Colocar na cabeça um capacete pelos 40 anos, um instrumento de poder usado por homens numa determinada época da nossa sociedade, pode ser visto como um símbolo do poder de que a mulher se apropria aos 40 anos legitimando-o como seu, ser dona da sua própria cabeça, da sua própria vontade. Filhos criados, estabilidade financeira, viúvas, divorciadas, casadas ou separadas, sem estarem subjugadas aos pais, irmãos ou maridos, a vida (re)começa aos 40, dizem elas!
Apesar dos entraves impostos pelo poder patriarcal, as mulheres, inteligentes, imaginativas e “empoderadas”, sempre arranjaram uma forma de se organizar e manifestar a sua insubordinação perante a opressão manifestando-se de forma simbólica e subtil.
Explica-se assim, a meu ver, a praxe da colocação do capacete de 40 óne pelo dia de aniversário como sendo um rito de passagem que se pode integrar na interpretação simbólica da apropriação do poder pela mulher.
Fontes
Eddy Barros RAMOS, Praia, 73 anos, Professora da Escola Técnica do Mindelo, aposentada.
Eutrópio Lima da CRUZ, Praia, 66 anos, Musicólogo, aposentado.
Serapião António OLIVEIRA, Boa Vista, 91 anos, Músico e Compositor, aposentado.
Valdemar PEREIRA, Tours, França, 82 anos, Vice-Cônsul, aposentado.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 755 de 18 de Maio de 2016.
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