DO MERCADO LIVRE GLOBAL
Identificar todas as patifarias da política associada e manejada pelo poder económico e financeiro não é nada fácil, mas vai-se fazendo com o tempo e em pequenas doses, por os seus agentes serem imensamente manhosos e venais. No meu último artigo sobre a matéria avancei algumas passadas, a que irei juntar algumas precisões de interesse para a nossa paróquia cabo-verdiana.
A estratégia da globalização partiu dos EUA, significando, sem o dizerem abertamente, americanização do mundo inteiro pela excelência dos seus valores e interesses. Simplificando, poderemos afirmar que globalização significa uma economia mundial ligada pela abertura universal das actividades nacionais aos mercados financeiros, permitindo que o capital internacional molde a produção, o comércio e até muitos serviços pelas suas opções de investimento, o que, obviamente, tem implicações políticas nacionais. Espera-se, porque se propôs e está em curso, que os países, para atraírem capitais, baixem os impostos limitativos de importações e proporcionem possibilidades de investimento mais alargadas através da privatização, incluindo de actividades vitais, como a educação, os serviços de saúde e os serviços básicos de fornecimento de electricidade e água.
Sujeitando-se a essa estratégia, os países subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento ficam sem recursos para garantir o bem-estar comum, para desenvolver a indústria e a agricultura, para redistribuir a riqueza através de serviços públicos. O fosso entre ricos e pobres alarga-se e os poderes dos governos nacionais tendem a reduzir-se à manutenção da ordem, e mesmo estes podem ser privatizados, como vamos constatando com o incremento de seguranças privadas e diminuição do policiamento estatal nas ruas.
A globalização é agora duplamente aceite como uma fase inevitável da História da humanidade, como o produto da comunicação e tecnologias de transporte que transformam o mundo numa “aldeia global”, ignorando os enormes fossos que separam e dividem a humanidade.
Promovido como “livre comércio”, é tudo menos isso; na prática significa um complexo sistema de acordos internacionais controlados e impostos pela Organização Mundial do Comércio (OMC), que facilita a circulação dos capitais de investimento para dentro ou para fora dos países, em detrimento dos regulamentos nacionais. A OMC, organização que não pertence ao sistema das Nações Unidas, criada, em 1994, para substituir o GATT, que já não estava manejável pelos poderosos. Impõe-se com força e ameaças aos países fracos, deixando os poderosos livres de qualquer limitação, quando se declara, hipocritamente, árbitro da aplicação das leis que regulam as relações comerciais internacionais e a circulação de capitais.
O governo dos EUA sente-se à vontade para violar o espírito e a letra do livre comércio sempre que opta por punir este ou aquele país através de sanções económicas, como vem acontecendo recentemente com a Rússia, após os acontecimentos na Ucrânia, que descrevi em artigo recente, obrigando os países da União Europeia (UE) a segui-los, com sérios prejuizos para estes países e menos para os EUA que pouco comércio mantém com a Rússia. Portugal, por exemplo, deixou de poder exportar carne suina para a Rússia, criando grande crise na suinicultura portuguesa e mal-estar nos criadores que não entendem o fundamento dessa proíbição.
Actualmente, segundo provou o Movimento Occupy , somos governados por uma minoria de 1% que constitui a classe dominante cavalgada sobre os lombos dos 99% restantes.
A História e a realidade vividas por nós todos confirmam que os mercados livres, ao contrário do que defendem os seus promotores, não são auto-reguláveis. Têm de ser regulados pelos Estados, porque, não o sendo, acontece o que sucedeu recentemente – crise global grave – tendo os Estados sido forçados a socorrer aqueles que antes exigiam Estado mínimo, garantindo não haver necessidade de regulamentação estatal dos mercados por estes se regularizarem automaticamente em função da oferta e da procura. Pena foi não se ter aplicado a terapêutica necessária de fazer inverter a situação, com domínio do político sobre o económico, na altura em que, de joelhos e em vias de colapso, pediram ajuda do Estado.
Já o economista Joseph Schumpeter tinha compreendido o capitalismo melhor do que qualquer outro economista dos séculos XX e XXI. Percebeu que o capitalismo não age para preservar a coesão social; deixado à rédea solta – como tem estado – poderá poderá acabar por destruir a civilização liberal.
Segundo o economista mais moderno John Gray, professor universitário inglês, de quem já falei noutros escritos, o socialismo encarado como sistema político parece ter ruído de modo irreparável, pelo que a saída do imbróglio da crise global terá de ser pelo economia de mercado bem açaimada e controlada com o máximo de rigor pelo Estado.
O tratamento da crise e a recuperação económica só poderão ser atingidos através de medidas que protejam e favoreçam a maioria, pondo freio à minoria parasitária e predadora, contra a evasão fiscal e a criminalidade económica, o encerramento dos paraísos fiscais onde estão para fins especulativos (não produtivos) triliões de dólares, a aplicação de leis rígidas para o registo dos movimentos de capitais, criação de obstáculos fiscais de deslocalizações de empresas que vêm prejudicando países e enfraquecendo os sindicatos, controlo das transferência internacionais de capitais, a proibição de aplicações da banca comercial aos fundos de risco, o levantamento do segredo bancário e a extinção das agências de rating (Agências Privadas de Notação de Riscos), inventadas pelos EUA para camuflar a recusa da intervenção de instrumentos internacionais na regulamentação financeira, agências essas que funcionam como arbitro imparcial, competente, “fiáveis” e juízes, embora juridicamente irresponsáveis dos seus actos. Se os governantes europeus fossem de boa cepa, não do tipo light, e não viessem de multinacionais e bancos, donde foram catapultados para cargos políticos, teriam recusado aceitar a “fiabilidade” dessas agências privadas de notação de riscos.
Não se propõe a desglobalização, mas a conservação do que é positivo na globalização e economia de mercado, bem como os direitos sociais, da vera democracia e da preponderância do poder político sobre o económico.
O mundo está sujeito ao capitalismo financeiro, nas mãos das tais multimilionários do 1% e de transnacionais. Às escondidas, processam-se negociações para concluir a Área de Livre Comércio Transatlântico (TAFTA) - de que já tratei detidamente noutro artigo -, apoiada entusiasticamente pelas grandes empresas e pela classe política dirigente de ambos os lados do Atlântico, apesar da crescente oposição popular. Se, como expliquei no artigo assinalado, realmente conseguirem criar tal monstro, desapareceria a soberania das nações, bem como a justiça arbitral porque esta passaria a ser feita particularmente (através de tribunais arbitrais, prevalecendo normas próprias que anulam as normas nacionais dos países europeus), sem intervenção do Estado e do Direito democrático em favor dos poderosos hiper milionários, favorecendo a desregulação e com normas que anulariam as nacionais dos países europeus. Estamos, portanto, em maus lençóis nas mãos de dirigentes políticos vindos da casa dos ricos e poderosos muito pouco interessados na melhoria das condições sociais da grande maioria porque ao serviço ou em conluio com a minoria predadora e sem alma.
Parede, Agosto de 2016 Arsénio Fermino de Pina
(Pediatra e sócio honorário da Adeco)
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