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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

[9628] - A CULINÁRIA CRIOULA SEGUNDO BALTASAR...

CABO VERDE VISTO POR GILBERTO FREYRE

(Apontamentos de Baltazar Lopes da Silva, lidos aos microfones da Rádio Barlavento)

ALIMENTAÇÃO E CULINÁRIA

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…”Não hesito em repetir: é muito possível que um pragmatismo que se impõe ao homem, em detrimento do lúcido ensaísta, tenha afastado da visão de Gilberto Freyre os valores que já vão ficando mais escondidos, tímidos de aparecer à luz do Sol, que se podem surpreender no dia-a-dia do arquipélago. 
Um deles, que numa crónica anterior prometi examinar e que parecerá estranho a quem conheça os limites das minhas capacidades, diz respeito à regionalidade de Cabo Verde em matéria de alimentação e de culinária. Afasto do meu intento o aspecto nutricional, que espero ver tratado em futuras emissões deste programa de vulgarização pelos meus amigos Drs. Manuel Torquato Meira e Henrique Teixeira de Sousa. O que para mim interessa e me compete é examinar a culinária caboverdiana no angulo em que Gilberto Freyre a situou: -- como rito de convivência. Por estilo de convivência entendamos o fenómeno simples, mas ao que parece tão difícil de atingir no quotidiano, de um grupo de pessoas se sentar ao mesmo banquete para todos se entenderem, mesmo que os caminhos sejam diferentes.
Antes de continuar a minha anotação, lembremos o que disse Gilberto Freyre: “ Não conheci nenhum prato regional que me parecesse uma daquelas “contribuições” para bem – estar da humanidade de que falava o sábio Branner” … 
O bem – estar da humanidade do passo de Gilberto Freyre não significa forçosamente o bem – estar que com a nossa culinária possamos proporcionar a estranhos. Amplia-se às relações quotidianas da nossa gente, na comemoração de efemérides que é grato marcar com a celebração de um rito de convivência. Tanto para as relações “externas” como para as relações “internas”, a culinária das ilhas oferece, ao contrário da impressão que Gilberto Freyre levou, uma riqueza surpreendente.
Para amostra, vejamos os pratos (e não estou certo de os citar a todos) que se preparam por cá com o milho: a cachupa, feita com o milho preparado da mesma maneira que para a “canjica” brasileira, mas muito diferente dela, porque, primeiro, não leva açúcar e leite de coco e, segundo é prato de substância na dieta comum e não simples sobremesa; ao que me informou uma senhora paraguaia no Rio de Janeiro, é mais ou menos, o “ jopará” da república guarani; -- tratando o milho com o “moedor” a “pedra de rala” ou o pilão, temos a “papa”, o “rolão”, o “xerém” e até a “papinha”; o xerém, suponho que denuncia uma influência mourisca, como o cuscus; “deitando” o milho na água, de véspera, e pilando-o no dia seguinte, na hora que em Santo Antão é designada, com um saboroso arcaísmo, por “manhana”, e ainda cozendo a farinha obtida em banho – maria, no “binde”, que é o “cuscuzeiro” do Brasil, temos o admirável CUSCUS, que é o pão dos pobres e também dos ricos ou remediados, quando eles resolvem aculturar-se; e note-se que o homem crioulo soube aproveitar esta técnica culinária num sentido regional, criando um outro tipo de cuscus, o de “talisca”, em que apenas varia a matéria-prima, que neste caso é a crueira da mandioca; e temos mais o fongo o fonguinho a banana-a e-fongo (é o acassá baiano), o gufongo, a brinhola, tão bom para os gulosos, a batanca, espécie de variante tropical da broa, como também me parece ser a banana-de-fongo, o milho em grão, tão do uso em S. Vicente, nas festas populares do mês de Junho; a jagacida, típica da Brava e creio que também do Fogo; o milho aliado ou parentém, tão útil nos momentos em que o pobre não dispõe de dinheiro para comprar o combustível, a gordura e os outros acessórios para os restantes quitutes do milho; a camoca, peitoral com o leite ou mel de cana sacarina, que corresponde ao gófio das ilhas Canárias, onde é um resíduo da cultura “ guanche”.
Falei demoradamente dos pratos obtidos do milho, porque é ele que tem feito o papel de cultura básica do arquipélago e de produto que o hábito e o consenso geral daí resultante tornou clássico na rotina alimentar do caboverdiano. Quanto mais “quitutes” poderia eu apresentar, em exemplificação da fertilidade regional no aproveitamento dos recursos locais! “O molho, de que há uma variedade, o “molho” de Manuel António”, parente próximo do “jigote” do Fogo; na Boa Vista a inteligente utilização da “ potona” como sucedâneo do milho em comidas de rala e no cuscus; o fringinato, que é um dos mais saborosos pratos extraídos do porco alimentado e criado com o farelo do milho da casa e com restos da comida da casa; o “suã” ou “som”, que é o acém dos animais abatidos – e tantos mais.
Como estilo de convívio, todos estes quitutes têm o seu papel a desempenhar e alguns a sua função nitidamente especializada. A especialização pode ser etnográfica, ligada a sucessos periódicos e festas populares, ou, então, adaptada a ritos individuais de convivência.
Creio que o homem de Cabo Verde não se afasta neste ponto do comum da humanidade. Quem sabe se não teremos nesta ritologia do encontro à mesa, com pratos específicos, uma sobrevida das práticas com que há milénios, se cultuava o deus doméstico e dos grupos que se seguiam, no repasto sagrado? Não interessa seguir as aventuras desta hipótese. A especialização etnográfica é incontestável.
Para o casamento, temos o xerém de boda, que se não prepara como o simples rolão de milho; nos preparatórios da festa do casamento, inserem-se intervenções da culinária, que se especializam, no “batuque” e na “pilagem”, no molho, no jigote, no cuscus de milho, na filhó, na banana de terra; para as festas das “bandeiras” (Fogo), batizados e também casamentos, prato etnográfico e a “batanca com molho”; outro prato etnográfico, o xerém com leite de coco da ilha de Santiago e a couve com carne de acém. Variadíssimas efemérides têm a sua expressão culinária. Dela não são excluídas as próprias comemorações fúnebres, como os ágapes, com um colorido de rito funerário, em que o molho e o café com cuscus são ou eram de rigor, nos dias de missa em sufrágio de almas ou nas rezas de terço. Nas festas populares, tanto nas do mês de Junho como nas outras que se estiram pelo ano fora, aparecem os pratos que se vendem aos festeiros em barracas, diante de fogareiros ou em bandejas, sem falar na doçaria nativa, em que predominam a “açucrinha”, o “rebuçado de mancarra”, o “doce de papaia” com mel ou açúcar e os saborosos bolos de mel de cana sacarina.
A ilha de S. Vicente (e creio que só ela) especializou-se na consagração etnográfica do “milho – em – grão” para as festas de Santo António e S. João no arraial da Ribeira do Julião  e em hortas vizinhas. Em Santiago, segundo informação que tive, o rito culinário da Quarta Feira de Cinzas não tem significado se nele não intervém o cuscus de milho com mel. Na Boa Vista, é bem conhecido o uso, como marca de hospitalidade, além do seu emprego na dieta quotidiana, do chicharro seco com milho “aliado” e café.
Não há encontro de amigos fora de portas, principalmente quando ele continua uma festa em que se perdeu a noite, que seja castiça em S. Vicente sem o clássico “caldo de peixe”, em que culinária etnograficamente o mindelenses aproveita os produtos regionais para acompanharem o peixe: a mandioca, a banana verde, a chamada batata inglesa e a malagueta. 
Alguns dos ouvintes residentes em Mindelo sabem que todos os anos um grupo de amigos vai passar o dia no Pé de Verde em casa de um anfitrião que não nos oferece a ementa dos hotéis, espécie de língua franca gastronómica, mas pratos regionais com base nos “quitutes” do milho e do porco doméstico. Quer dizer que a convivência humana, alegre e afectuosa, que ali se estabelece invariàvelmente, não tem dificuldade em nascer e dar compreensão mútua às nossas almas que o dia-a-dia lança em direcções diversas.
Lembra-me neste momento a figura do falecido Augusto Vera Cruz, senador da República e crioulo como poucos. Vera Cruz tinha a devoção do milho para a sua mesa de homem que gostava de receber, e sabia receber. Os variados produtos culinários do milho, em regra de rala, eram a nota inteligentemente regional que ele caprichava em pôr nas circunstâncias do seu convívio.
Lamento ter uma erudição gastronómica muito reduzida, porque mesmo as ligeiras indicações que deixei atrás nesta crónica apenas as fixei pela atenção que mereceram ao meu amadorismo no capítulo da Etnografia. Qualquer ouvinte mais familiarizado com o assunto poderia trazer contribuição valiosa, em certos sectores, como, por exemplo, o da doçaria. Eis um sector da culinária a que Gilberto Freyre dedica um interesse que o levou, salvo erro, a recolher receitas de doces, algumas delas guardadas avaramente no seio das famílias tradicionais de Pernambuco e da Baía.
É assunto ainda não estudado em Cabo Verde, como tantos outros – o da culinária em geral e da doçaria em especial. Parece-me particularmente interessante recensear os aspectos regionais da doçaria, por exemplo, do Fogo e da ilha de Santo Antão. Há já muitos anos, alguém alvitrou-me para a doçaria da ilha do Fogo a influência da perícia dos conventos de freiras em senhoras que em tempos idos neles faziam a sua educação. Aqui fica a hipótese.
O desconhecimento do prato regional que se queixou Gilberto Freyre teve, fora da rotina do quotidiano de Cabo Verde, um desmentido flagrante quando o Chefe do Estado visitou o arquipélago e lhe foi oferecido na quinta da Trindade um almoço em que o prato escolhido para marcar a presença regional foi a cachupa. Dêem-lhe o nome que quiserem, cachupa rica, por exemplo, em oposição à cachupa do pobre. Não é a composição deste “quitute” que verdadeiramente interessa; ela é tão-somente índice das possibilidades económicas de quem o manda servir à mesa. Interessa, sim, é que um dos variadíssimos pratos que o milho nos permite fosse considerado com a dignidade suficiente para catalisar os minutos de convívio, na Trindade, do Chefe do Estado com os seus compatriotas naturais destas ilhas ou nelas residentes. 
Se isto não representa personalidade regional num capítulo da convivência a que Gilberto Freyre atribui com razão valor relevante, então o que nos resta, os de Cabo Verde, é a posição mendiga do pedinte à esquina, que abdicou de vez das suas perspectivas de vitória na batalha de todos os dias e se demitiu como valor social.
Felizmente, não é assim. Temos o corpo mais duro e a alma mais aberta à vida do que muitos supõem. Isto que digo não é retórica, nem sobreestimação das nossas potencialidades; é simplesmente o depoimento de um homem comum, preocupado com a justiça que deve ser feita aos outros homens comuns destas nossas ilhas.

Rádio Barlavento / Emissão de 23 de Junho de 1956

Pesquisa de A. Mendes
  
      



2 comentários:

  1. Estava eu de partida para Angola quando Baltasar escrevia sobre as comidinhas crioulas...Uma achega: creio que, em Santiago, chamam ao "midje-in-gron" mindxelense, Cachupinha... E, Adriano Moreira, quando era Ministro do Ultramar e foi à Brava, também comeu uma bela de uma cachupa, claramente rica!

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  2. Quando Baltazar Lopes da Silva na antena da Rádio Barlavento defendia valentemente aquilo que era definido como a Culinária Regional cabo-verdiana.
    O que é que Gilberto Freyre pretendia com esta afirmação preconceituosa? : “ Não conheci nenhum prato regional que me parecesse uma daquelas “contribuições” para bem – estar da humanidade de que falava o sábio Branner” …
    Pois pois a cachupa é daqueles pratos que merecem figurar nas “contribuições” para o bem – estar da humanidade. Até os estrangeiros o plebiscitariam.
    Gilberto Freyre chegou em Cabo Verde nos anos 50 e foi ofuscado pela imponência das montanhas, não viu a alma da Humanidade que se projectou nestas ilhas. Mas do Monte Cara de S. Vicente ele poderia ter vislumbaro o Mundo das ilhas. Too Bad para ele!!

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