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Arsénio Pina |
CARTA ABERTA AO GRUPO DE REFLEXÃO PARA A REGIONALIZAÇÃO
Face à
relativa passividade do Grupo de
Reflexão para a Regionalização de Cabo Verde e sua tendência em defender,
ou não criticar abertamente e com independência, as hesitações partidárias, sendo
uma organização apartidária, permito-me tentar esclarecer alguns pontos e
sugerir abordagens que presumo de interesse para o Grupo, cujos elementos
conheço por ter participado de reuniões aquando das minhas deslocações a S. Vicente,
a fim de o Grupo poder ser mais acutilante e produtivo. Começarei por aspectos
gerais antes de abordar questões particulares.
Antigamente,
os intelectuais eram chamados letrados, termo mais neutro, que não
irrita tanto aqueles que fazem pouco uso da inteligência, da razão. É evidente
que as pessoas, quanto mais lêem, mais problemas levantam, podendo tornar-se
incómodas, sobretudo para o Poder. Este, quando pouco ou nada democrático,
considera a necessidade de informação correcta e detalhada exigida pelos
cidadãos, ou por militantes no caso de partidos políticos carregados de dogmas,
“mórbida curiosidade de intelectual burguês”. Em relação a certos partidos
políticos – tivemos experiências disso – a liberdade é antiliberdade porque não
inclui senão a liberdade de concordar. Insistir nos problemas por solucionar,
voltar às dúvidas por esclarecer, é um desrespeito do individualismo. É bom de
ver que isso é típico de Estado centralizador, vertical, dominador e absoluto
que não o põe ao alcance e à altura dos cidadãos, uma modalidade de poder
político e de Estado inteiramente oposta à democrática, típica de partidos com
uma concepção antidemocrática e vanguardista do poder, quando o Estado deve ser
pertença de cada cidadão.
É evidente que
quem lê – é pena haver cada vez menos gente a ler, preferindo a net e a TV, que
não substituem livros – encontra, sem querer, ou busca, deliberadamente,
informação verdadeira, satisfatória ou completa. Sem informação capaz de
permitir a cada um assumir uma posição, formular um juízo seu com suficiente
conhecimento de causa, tudo o mais será minado pela raiz e condenado ao
insucesso, como bem escreveu um contemporâneo dos tempos de Coimbra (J.A. Silva
Marques). Sem informação verdadeira e completa não pode haver participação
esclarecida, que algumas vezes nos pedem, hipocritamente, os governos, para
levar à discussão, o motor das ideias susceptíveis de nos conduzir ao progresso,
ultrapassando os egoísmos pessoais e partidários.
Creio que os
amigos do Grupo entendem e sentem o que venho escrevendo por terem vivido, como
eu, duas situações de limitação drástica de liberdade e de deturpação da informação,
a colonial, com o fascismo, e o início da independência, devido ao sistema de
partido único. A época do MpD iniciou-se com eliminação dessas limitações e
teria demorado muito mais tempo se não tivesse cometido erros perfeitamente
evitáveis descritos noutra ocasião.
Foi Gramsci
quem afirmou, “só a verdade é revolucionária” (em tempos escrevi, erradamente,
que tinha sido Lenine a dizer tal), mas, como esclareceu o comunista português do
Comité Central do PCP, Carlos Brito, “tudo depende. A verdade só é
revolucionária se for a verdade do nosso Partido, porque essa é que é a
verdade”. Como se pode constatar, os comunistas que seguiam, e ainda seguem, a
linha estalinista (actualmente, talvez somente o português) atêem-se a dogmas.
Rosa Luxemburgo, judia polaca, a única marxista que fez frente a posições de Lenine,
teria afirmado: “A liberdade apenas para os partidários do governo, apenas para
os membros dum partido – por mais volumosos que sejam estes – não é liberdade.
A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade daquele que pensa de modo
diferente”. Claro que para os comunistas ortodoxos e os dirigentes de partidos
únicos, essa liberdade é idolatria pequeno-burguesa dos valores burgueses da
democracia. Como afirmaram Bernard-Henri Lévy e Mário Vargas Losa, não existem
ditaduras de esquerda e de direita, existe tão-simplesmente o horror da
tirania.
O capitalismo,
face ao comunismo, para sobreviver, teve de evoluir para a social-democracia,
que comporta o social e o colectivo, sem castrar o indivíduo, mas o comunismo,
que podia ter-se contentado – “regredido”, na opinião dos comunistas – com o
socialismo de rostro humano, não o fez por ser uma religião respeitadora dos
seus dogmas, verdades últimas dos livros sagrados, que não podem ser alterados
nem adaptados ou modernizados às novas condições do mundo, o que levou à sua
implosão na URSS, desmistificando a bela canção interpretada por Gilbert
Becaud, Natalie: “Aprés le tombeau de
Lenine/on irait ao Café Pouchkine/ boire un chocolat …”, que confortou tantos
militantes comunistas e simpatizantes.
Não se
depreenda destas linhas que pretendo identificar o PAIGC/CV com um partido
comunista totalitário, mas que se inspirou no marxismo-leninismo, não restam
dúvidas, limitado um pouco pela tradição civilista, democrática e de
associativismo social, mesmo incipiente, do cabo-verdiano, adquirida através da
emigração, contacto com outros povos no exterior, no Porto Grande de S. Vicente
e ilustrado pelo Seminário-liceu de S. Nicolau, o Liceu Gil Eanes e o de Adriano
Moreira, realidades graças a mecenas nacionais, respectivamente o Dr. Júlio
Dias, Senador Vera Cruz e o ex-ministro português Professor Adriano Moreira,
que cederam, os dois primeiros, as suas residências para alojar esses
benefícios para o país. O PAIGC/CV, infelizmente, utilizou uma linguagem
monocórdica, categórica de infalibilidade semelhante à papal, discussão
hermética ao nível dos quadros superiores do Partido sem ir ao tutano dos
problemas e sem aceitar as sugestões e propostas dos que não eram militantes,
mesmo sendo simpatizantes. Sendo o partido único moda na época da implantação
da independência, foi aceite com poucas resistências e serviu bem, como afirmou
alguém, para arrumar a casa e evitar a confusão política que reinou em
Portugal, tendo, no entanto, durado tempo demasiado como partido único, de
pensamento único, quando, em verdade, o Estado é dos cidadãos da República, não
propriedade privada dos partidos políticos.
Do
Estado-providência, que obteve vitórias significativas inegáveis a nível da
saúde, educação e desenvolvimento socio-económico, passou-se, sem transição nem
cautelas recomendadas pelo bom senso, para a economia de mercado e globalização
sem regulação financeira nem económica, instituídas pelo neoliberalismo, o que
levou ao enfraquecimento do Estado-nação, o qual perdeu o controlo da economia
permitindo a vadiagem do capital e a imposição de instituições que tentam
orientar a economia (FMI, OMC, etc.) com confiscação parcial da política pelos
peritos mundiais do neoliberalismo, política que deixou de controlar a economia
e finanças e deu, como resultado, o que sabemos – uma crise económica e
financeira de todo o tamanho - e ainda vivemos.
Referi-me à
vossa relativa passividade, acrescento fé, na promessa do novo Governo em
implantar a descentralização e regionalização, o que não é recomendável, por a
fé ser admissível em religião, onde se admitem milagres, não em política. Não
há que baixar a guarda. Todas as cautelas são poucas, dado que, geralmente, à
mínima distracção passam-nos (os do Governo) rasteiras. Há que ser vigilantes,
porque, por exemplo, relativamente à educação universitária, mormente na
privada, constatamos que estão a formar licenciados para profissões
inexistentes, ou que já não existem no país. Afinal - noutro aspecto - somos
nós que damos cabo do património nacional pela cupidez dos promotores que
quiseram construir no local de implantação de um património nacional um hotel
ou um casino, como se fosse em plena Ribeira de Julião, Achada de S. Filipe ou
em Campanas de Baixo, como se houvesse um apuro especial estético e de bom
senso dos arquitetos. Digo nós, porque deixámos que aqueles que têm o dever
legal de preservar a memória e integridade da cidade, os decisores, fizessem -
e continuam a fazer - essas asnidades criminosas sem nos opormos, utilizando manifestações
de rua de protesto, ou mesmo a força como último recurso.
A alternativa
a esse estado de coisas, pelo menos para nós, cabo-verdianos, ainda vítimas do
centralismo, é uma evolução
decididamente descentralizadora, simultaneamente atenta à solidariedade
entre as diferentes ilhas. As regiões, pela estratégia defendida pela
regionalização, beneficiando da transferência de competências importantes,
iriam impondo-se como instituição chefe-de-fila entre outras colectividades. O
Estado, garante da unidade da República em cada uma das novas regiões, terá representação
em cada uma das regiões, com a finalidade da regulação e controlo efectivo das
políticas de desenvolvimento, de execução das competências delegadas e de
normalização na aplicação das normas judiciais do Estado. Os falsos democratas
e verdadeiros demagogos que invocaram, ou invocam o sufrágio da rua sem
discussão prévia e manipularam, ou podem vir a manipular habilmente a opinião
pública para servir as suas ambições pessoais e partidárias, preferem manter-se
no centralismo, escorados na burocracia excelentíssima para se pouparem a
esforços e ao debate, em vez de criar a proximidade entre os serviços do Estado
e dos cidadãos seus utentes.
É óbvio que
este processo de descentralização e regionalização será longo, por ser um
conjunto de compromissos e de adaptação entre o Estado - uma entidade
integradora em nome de um interesse comum – e as regiões. Se houver coragem e
rasgo da parte do actual Governo, será uma oportunidade
única do MpD para colocar nas mãos do povo uma decisão histórica – que o
PAICV não quis colocar -, ganhando assim uma imprescindível autoridade
democrática para inverter o rumo para o abismo em que estamos em vias de nos
precipitarmos.
Lançada esta
semente à terra, que é fértil por ser de gente letrada e conhecedora da
realidade do país, espero que germine e frutifique.
Parede, Março de 2017
Arsénio Fermino de Pina
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarMais um apelo vindo do digníssimo Arsenio de Pina para que a sociedade civil tome um compromisso responsável com a ilha abandonando o comodismo e o medo. Esta ilha merece ser acarinhada pois muito devemos-lhe
ResponderEliminarEstes são sempre artigos que nos ajudam a entender e arrumar ideias sobre a regionalização. Agradeço ao Arsenio Pina, por mais este valioso contributo.
ResponderEliminarBraça,
Paulo
MAIS UM GRANDE CONTRIBUTO DO NOSSO ILUSTRE E SAUDOSO DOUTOR ARSENIO QUE NOS DEIXOU FISICAMENTE O ANO PASSADO. QUE DESCANSE EM PAZ.
ResponderEliminarANONIMO NAO, FOI UM LAPSO, CLIQUEI ANTES DE TEMPO, LIDIO DE SILVA
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