DEGREDADOS
Foi numa madrugada de janeiro melancólica e lúgrebe
com um carme dantesco. Sob uma chuva miúda e fugida entre duas filas de guardas
de baioneta armada, marcham para o cais os degredados.
Na rua erma e gélida qual catacumba em que a romper o
silêncio apenas ressoava o passo regular da soldadesca, um taberneiro
madrugador abria a loja, especava-se depois entre portas a ver desfilar aquele
cortejo de desgraça e, erguendo o braço espalmando a mão suja murmurava rindo
alvarmente:-- “ São vadios…”. E eles os párias que a justiça proscrevia,
passavam cabisbaixo e andrajosos dardejando olhares de fome.
Eu, quedei-me a examinar esses presos dos quais apenas
uns seis, de melenas e ar gingão inspiravam asco; a maioria dos da leva uns
vinte talvez, tinham o tipo d’operários sem trabalho e caminhavam com uma
atitude de verdadeiras vítimas da imperfetibilidade social.
Horrorizava ver, numa selva de baionetas, marchar para
a morte lenta ou para o vício, esse contingente do grande exército dos sem pão;
e levavam o sinete do vilipêndio, esses desgraçados que poderiam ser cidadãos
honestos e generosos. O taberneiro o dissera! Eram vadios…
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Chegada ao
cais a força fez alto, uniu as fileiras, e as coronhas da Mauser batendo
pesadamente no solo produziram um som cavo e profundo como um dum rumor
subterrâneo; as águas barrentas e revoltas do rio batiam numa fúria impotente
contra a muralha do molhe e, de lá em baixo, fortemente atracado, o rebocador
bambaleava-se galhardamente de popa à proa esperando fumegante o momento de
conduzir os presos para o paquete.
-- Agora, no cais procedia-se à chamada; um sujeito
grave, de certa idade bradava já em voz irritante o último nome da lista que
tinha na mão: “ João Maria”, pronto! Disse um rapaz ainda imberbe que chorava
em silêncio.
Uma mulherzita sua conhecida que chorava a meu lado
contou-me a sua história. Ele era enjeitado, aprendiz de carpinteiro, um dia
despediram-no e o pobrezito, depois de procurar em vão em que ganhar a vida,
viu-se sem dinheiro e sem abrigo e passou a dormir nas praças públicas; foi
preso várias vezes; por último deram-lhe parte e agora lá o mandaram para essas
áfricas …
Afastei-me
confrangido ao ouvir esta história que tinha tanto de singela como de trágica.
E enquanto os
clarins dos navios de guerra tocavam a alvorada n’um tom plangente e triste
como uma marcha fúnebre, a bordo do rebocador, esse contingente do grande
exército dos sem pão dispunha-se de lágrimas nos olhos e coração opresso a
partir para a morte ou para depravação se não morressem pelas febres
aprenderiam a ser criminosos!
Eram vadios….
Armando D’Aquino
Em “ A luz” Lisboa, 25 janeiro de 1909
Nota: - “ Cabo Verde – A deportação portuguesa para
Cabo Verde parece ter sido verdadeiramente significativa no século XIX. De
acordo com os dados de António Carreira, foram deportados para o arquipélago
2.433 condenados, dos quais 81 mulheres”
COLABORAÇÃO: DJEU
Relato pungente que nos obriga a questionar a existência humana e as suas atribulações, assim como a forma iníqua como a autoridade do Estado muitas vezes é exercida.
ResponderEliminarSem dúvida, uma excelente peça, desenterrada pelo nosso amigo Artur, num retrato claro da condição humana no início do Sec. XX.
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