Mindelo, Doce Mindelo
23 de Outubro de 2013 às 13:39
À medida que escrevo estas palavras envoltas
na melancolia que aprisiono, sinto a brisa fresca desse meu mar da Praia de
Bote. Meu e de todos os mindelenses que sentem o mar e a marginal como parte
integral das suas integridades e suas variadas personalidades. Miro o edifício
da Rádio e vejo a imagem imponente que dele tive, no verão em que pratiquei
vela sobre esse mesmo mar eutrófico e lodoso. Deslizava sobre esse meu mar,
nosso mar, no barco da classe optimist e sentia a liberdade que o vento me
entregava em mãos ao fustigar a vela, enquanto sussurava as amarguras de
Mindelo em meus ouvidos. E as gruas velhas, enferrujadas, enormes e
impávidas, ladeadas de montanhas de conchas na ponta do velho cais da
alfândega, que sempre me levaram, numa autêntica viagem, ao tempo em que
protagonizaram braços-de-ferro ferozes com as cargas destinadas aos vapores que
sempre alegraram a sumptuosa Baía. No horizonte deste mar, azul, manso,
resiliente, jaz o gigante guardião desta cidade esquecida no tempo e perdida na
vida. O Monte Cara, se pudesse, hoje chorava, soluçava e berrava de angústia.
Ele que presenciou o esplendor desta cidade nos tempos áureos da presença
inglesa, onde o carvão era o motor da economia da ilha, hoje choraria ante o
desamparo desta ilha que outrora foi berço de inovações, foi fruto do engenho
dos filhos da ilha para ultrapassar as vicissitudes arquipelágicas que todo o
ilhéu conhece. Passeio a mente pela marginal, pensando nesta minha ilha, nesta
minha gente e indagando o motivo, o percurso histórico e as soluções para este
meu Mindelo, Doce Mindelo. Desespero perante este cenário triste em que se
afunda Mindelo a cada dia que passa nesta nossa cronologia. Fecho os olhos e
oiço os apitos na Baía quando se dão as 12 badaladas anunciando o final do ano
e ínicio do Ano Novo, vejo a alegria contagiante com que as pessoas festejam.
Consigo ver os esplêndidos e fulgurantes andores do carnaval e sentir o ribombar
das batucadas que nos fazem mexer automática e freneticamente, mesmo que
sejamos péssimos dançarinos. Vejo a creatividade estampada no rosto e nas
vestes dos actores do carnaval de rua, onde as críticas sociais, personificadas
em verdadeiros circos ambulantes, são ladeadas pela pura demonstração do humor
típico do mindelense, quando este se transforma nos mais variados personagens.
Vejo a Rua de Lisboa agora enrugada, caquética e a gritar por um bálsamo que
lhe traga a jovialidade de outrora. Sinto o cheiro característico da Rua da
Praia, o cheiro a peixe. Por momentos incomoda, porém ao me fazer relembrar que
este é o cheiro da luta dos pescadores que madrugam, arriscando a vida, em
perseguição do dia de trabalho, animo-me e até celebro haver este cheiro no ar.
Este cheiro da vida das peixeiras que, com a sua lábia característica e
aperfeiçoada com o passar do tempo, convidam a comprar a bela cavala que para
nós olha com os olhos lânguidos. Celebro este cheiro por ser o cheiro da vida
das gentes deste meu Mindelo, Doce Mindelo. Continuo o meu passeio pela cidade
que me viu nascer e crescer. Vejo a praça Estrela, o campo de ténis,
Liceu Ludgero Lima, o Liceu Velho, a Praça Nova, o Campo Novo, o
Fortinho, a Ribeira de Vinha e ainda a minha eterna Ribeira Bote, palco das
minhas mais belas e atrevidas aventuras. Lugares de excelsa importância na vida
desta minha gente. Mas que agora carregam uma atmosfera lúgubre fruto da
desilusão que a ilha sofre. Será o povo, será a História, será o tempo ou será
a reconversão de certos valores humanos intrínsecos? Qual o motivo desta
decadência, visível e entristecedora, desta minha eterna Cidade? Meu
Mindelo, Doce Mindelo, orgulho-me de ser fruto das tuas entranhas, orgulho-me
deste mar imenso que te abraça em consolo hoje em dia, orgulho-me
essencialmente por ter vivido tudo aquilo que hoje me alegra, me fortalece e me
faz ser quem sou. Sendo filho da ilha, espero poder dar o meu contributo
para a reabilitação dos pilares desta tua magnânima estrutura que muito suporta
e suportou. Desabafo nestas linhas o meu orgulho e minha actual tristeza por
esta minha Cidade do Mindelo, Doce Mindelo.
"É necessário sair da ilha para se ver a
ilha. Não nos vemos se não saímos de nós." (José Saramago)
Teu Filho, James Silva Ramos
O amigo Adriano Lima, leu o texto, disponilbilizado pelos tios do autor e, claro, comentou com o brilhantismo que lhe reconhecemos...
Realmente, é belo este texto do vosso sobrinho, Fátima e José. Bordado em poesia, o jovem deita para fora a sua nostalgia e a saudade não mitigada de imagens oníricas que se mantêm perenes, resistindo a estes tempos de desamparo por que passa a nossa ilha natal. Mas se a ilha ainda assim conserva e suscita o mistério que mantém vivo o sonho, há razão para não desesperarmos. Só uma realidade viva é capaz de manter o sonho intacto, e este provém dos recessos de uma alma colectiva em que se misturam pulsões, sentimentos, encantamentos e paradoxos, mesmo que por vezes sem o nexo causal que permite aquela materialidade que alguns alegam não possuirmos. Mas esses têm é inveja de não conseguirem olhar para além disso como nós somos capazes. É esta a diferença. O ser mais evoluído é o que consegue perscrutar-se e inventar-se para melhor percepcionar o que o cerca. A minha filha mais nova acompanhou-me no ano passado na viagem que fiz a S. Vicente e ela confessou-me que se comoveu por algo de místico que sentiu na nossa ilha. Disse ela qua não obstante os sinais de pobreza indisfarçável que viu em algumas pessoas, notou-lhes um ar de quem inventa e mantém uma permanente alegria dentro de si.
Abraço
Adriano