MIGUEL DA CONCEIÇÃO MOTA CARMO
O Homem, o Militar e o Administrador
CAPÍTULO V
Um administrador meticuloso em todos os seus actos
Inerente aos cargos que o administrador detinha era a função de censura política sobre a actividade da comunicação social e editorial. O escritor Nuno de Miranda, que era um jovem de 20 anos na altura, conta que, apesar de tudo, o Administrador não levou muito a sério essa função e dá conta de um episódio em que ele teve um curioso confronto com ele. Sucede que o Nuno de Miranda era um dos responsáveis pela revista literária “Certeza”. Por entender que certa edição da revista pisava algum terreno que poderia ter conotações políticas, proibidas pela censura instituída pelo regime político em vigor em Portugal, um dia o Administrador o chamou ao edifício da Administração e ameaçou proibir o número da revista que ia sair. Então, o Nuno de Miranda disse-lhe que seria uma pena porque ia ser publicado um belo poema de uma portuguesa metropolitana de nome Maria Guilhermina. Segundo me contou esse primo, foi uma acha provocatória que ele meteu porque sabia que a poetisa era filha do seu interlocutor. Mota Carmo, depois de confirmar bem a identidade da poetisa, exclamou: - Mas ela é minha filha! E prosseguiu, bem-humorado: − Bem, desta vez safam-se, mas não se metam em coisas complicadas. Ora, a poetisa em causa é a filha que o Mota Carmo teve em Lisboa, aos 22 anos. O Nuno de Miranda acrescentou que essa senhora viria a casar-se com Délio Nobre Santos, que foi seu professor de filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa, e que contraiu mais tarde uma relação de amizade com o casal, visitando a sua casa. Mais referiu aquele escritor cabo-verdiano que o Mota Carmo, apesar da sua fama de autoritário, tinha sentido de humor.
Em 1948, a Imagem de N.ª S.ª de Fátima foi de visita a S. Vicente e isso exigiu muitos preparativos e calcule-se que o Administrador se tenha empenhado seriamente nesse sentido, não se poupando a esforços e trabalhos, como era do seu timbre. Dir-se-á que Mindelo se engalanou para receber a Imagem, acontecimento que pode ter revestido um grande significado e causado forte impacto emocional numa altura em que, poucos anos antes, muita gente fora dizimada pela fome. Quando a natureza é severa e não se compadece com a sorte dos seus filhos, apela-se à providência divina.
Foto obtida através da Net |
Na foto anterior, vê-se que uma grande lancha carvoeira foi devidamente enfeitada com a cor branca para transportar a Imagem entre o navio que a trouxe de Portugal e o cais de desembarque. Naquele tempo, não existia ainda o cais acostável, cuja inauguração só aconteceria 13 anos decorridos.
Procissão no Mindelo por ocasião da visita da imagem da N.ª S.ª de Fátima; Mota Carmo, fardado, está atrás do andor e ao lado do padre; foto obtida através da Net.
Pode supor-se que o Mota Carmo seria católico praticante, mas não tenho qualquer dado seguro que o confirme. A minha alusão a esse respeito se deve ao facto de ter lido um texto que refere a sua intenção de impor em S. Vicente uma moralidade católica, mas pode a afirmação querer apenas restringir-se ao padrão de costumes uniformizador que o ditador António de Oliveira Salazar julgava facilmente aplicável a todos os cantos do império português. A presença do Administrador nessa procissão pode ser mais uma exigência protocolar relacionada com as funções que exercia do que propriamente um acto de fé.
Há evidências de que o Administrador Mota Carmo era muito escrupuloso na organização e preparação dos actos públicos da sua responsabilidade. É importante dizer que os oficiais do Exército, por formação própria, têm um especial traquejo nessa área.
Visita a S. Vicente do Governador João de figueiredo, oficial da Armada, porventura a primeira visita oficial; Mota Carmo está ao seu lado esquerdo, em traje civil; foto obtida através da Net
O cortejo acima retratado dirige-se ao Palácio do Governo em S. Vicente, depois de o Governador ter desembarcado no antigo cais, onde o aguardava a comitiva oficial e o povo anónimo. O nosso povo comparece e recebe sempre de coração quente e aberto quem chega, mormente uma alta figura pública como o Governador da Colónia. Estas duas fotos dão bem uma ideia da limpeza, ordem e arrumação que o Administrador Mota Carmo terá imprimido à cidade do Mindelo. Hoje, apesar do progresso e crescimento da cidade, não falta quem recorde os tempos em que Mindelo conseguiu uma certa compostura urbana em contraponto com algum desleixo e apatia que hoje são visíveis em alguns aspectos, como as vendas de rua que proliferam ameaçando a saúde pública e a degradação de importantes edifícios do património arquitectónico da cidade.
Mota Carmo impondo medalhas desportivas num campeonato de futebol no velho estádio da Fontinha; foto cedida por Luiz Silva.
Pessoas do tempo da sua administração referem que Mota Carmo era um homem com grande capacidade de trabalho e que procurava estar em cima de todos os acontecimentos inerentes ao seu cargo, não dispensando a sua presença onde quer que ela fosse necessária, numa quase demonstração de ubiquidade. Bem a propósito do acto a que se refere a fotografia em cima, existe um documento sobre algumas divergências que havia entre as autoridades administrativas e a Associação Desportiva de Barlavento (ADB), que, tal como a sua congénere de Sotavento (ADS), passou por dificuldades financeiras. Cita esse documento que “o relatório de Mota Carmo, Administrador do Concelho de São Vicente, de 17 de Setembro de 1945, já informava que as agremiações da Ilha tinham grandes dívidas, mantendo-se graças a apoios individuais (por ele chamados de carolas). Para ele, até mesmo o facto de existirem muitos clubes contribuía para tais problemas, como podemos ver pelo ofício datado de 4 de Março de 1948, enviado ao chefe da Repartição Central dos Serviços da Administração Civil, prestando contas de sua análise dos documentos e livros de contas dos grupos desportivos do Mindelo”.
Além do Nuno de Miranda, várias pessoas antigas que eu ouvi são unânimes em afirmar que o Administrador vivia quase exclusivamente virado para as ocupações do seu cargo, sendo frequente ver acesas, pela noite dentro, as luzes do seu gabinete de trabalho. Onde houvesse obras ou trabalhos comunitários em curso, fazia-se presente com a assiduidade necessária para acompanhar de perto o seu andamento ou incentivar os responsáveis directos pela sua execução. Aliás, a entrevista anteriormente transcrita é bem elucidativa da sua actividade afanosa e da sua preocupação com a celeridade e rigor na execução de todos os trabalhos do Concelho. Mesmo tratando-se de actos de menor relevância, muitas vezes aparecia ou chamava a si a orientação directa do que lhe parecia estar emperrado ou em vias de impasse. Mota Carmo pouca disponibilidade teria para o lazer e diz-se que não era pessoa que tivesse uma vida social intensa e, à excepção dos actos oficiais, raras eram as vezes em que aparecia em festas, com ressalva para os espectáculos teatrais que mandou organizar para colher fundos para as suas obras de caridade e assistência. Parece que não frequentava o Grémio, como me disse o escritor Nuno de Miranda e outras pessoas. E acredito que não, uma vez que, muito provavelmente, era o local mais indicado para urdir a trama de que ele se deu conta, sabendo-se como se sabe que a elite social tinha ali o seu pouso dilecto para os habituais mexericos e soltura da má-língua. Basta atentar nas palavras proferidas pelo Administrador sobre a má vontade e a reacção negativa de certa elite social contra a sua obra de assistência pública. No conflito entre ele e a elite social mindelense, tenho dificuldade, por ausência de conhecimento de causa directo ou de fonte oficial, em proferir qualquer julgamento pessoal. Uns poderão inclinar-se para uma certa censura à hipocrisia de alguns sectores sociais da nossa terra, assim como outros preferirão acentuar o autoritarismo do Administrador como factor atenuante da má vontade daqueles. Admito que estará mais próximo da verdade quem tenha sido contemporâneo dos acontecimentos e se paute por rigor e isenção, amante da justiça. Mas pouquíssimas pessoas restam já que poderiam prestar-se a um testemunho rigoroso e interessado acerca de factos já amontoados sob o peso do tempo.
Adriano Miranda Lima
- Continua -
MOTA CARMO: UM ADMINISTRADOR METICULOSO EM TODOS OS SEUS ACTOS
Quando aquele que foi considerado um Papão em S. Vicente era na realidade um administrador meticuloso em todos os seus actos. Afinal temos aqui passados quase 70 anos na poeira dos tempos,um homem que apesar da sua dureza de mão de ferro da época da ditadura salazarista tinha esta outra dimensão soicial e política que hoje alguns poderão olhar com outros olhos. Então vamos à leitura do texto resultante das investigações do amigo Adriano Miranda Lima
Quem revisitar a história de Cabo Verde e em especial de São Vicente durante os anos quarenta do século XX, não pode ignorar a presença do Governador Militar da ilha, o Capitão Miguel Conceição Mota Carmo, mais conhecido por Mota Carmo. Era o tempo da guerra (Segunda Guerra Mundial) em que o Porto Grande de São Vicente e as suas águas exerciam uma função estratégica no domínio do Atlântico. Aconteceu que, já na Primeira Grande Guerra, dois barcos brasileiros carregados de alimentos foram bombardeados dentro do Porto Grande. Houve um boato que dizia serem filhos de cabo-verdianas e ingleses da marinha inglesa que, informados da situação da fome em Mindelo, resolveram bombardear os dois barcos brasileiros carregados de feijão. Os ingleses com as suas companhias carboníferas e os seus técnicos, que formaram muitos jovens, dominavam a ilha. Pode-se dizer mesmo que a cidade do Mindelo e o seu desenvolvimento muitodevem aos ingleses que marcaram a sociedade mindelense ao nível do desporto, da cultura, dos direitos sociais e, até na maneira de estar e de ver o Mundo. Já em 1913 tinha sido criado em Mindelo o primeiro sindicato de defesa dos trabalhadores, saudado por Eugénio Tavares e Pedro Cardoso. Quando Mota Carmo chegou a Cabo Verde,.já existia uma censura instalada desde 1933 que ele seguiu à risca, o que não podia ser do agrado da sociedade civil e do grupo Claridoso. Porém ele marcou de forma positiva o povo pelo combate aos comerciantes que açambarcavam os mantimentos e exploravam o povo.Ele mesmo contou à sua filha Astrides, nascida em Cabo Verde, que teria sido essa classe comercial que forçou a sua saída de arquipélago, razão pela qual não se despediu de ninguém e cortou a sua relação com Cabo Verde. Ficou com a fama de um homem de justiça, autoritário, mas muito justo. Ficou também conhecido pelo facto de não gostar de mini-saias, obrigando as mulheres a descer as bainhas das saias. O único mal que se lhe atribui foi o facto de ter deixado alguns filhos e nunca se ter ocupado deles. Não há desculpas para esse comportamento, vindo de um militar que pretendia fazer justiça aos outros. E é um absurdo dizer-se que era moda fazer filhos e deixá-los nos braços das mães !
ResponderEliminarEste trabalho do Adriano, a meu pedido, distingue-se pelo rigor da pesquisa e um compromisso total com a verdade e a história. As minhas três filhas, Alice, Adela e Aurora, netas do Mota Carmo, tinham o direito de saber quem era o avô, mesmo que não tenha cumprido o seu dever de pai e cidadão. Foi a única mancha na história do Mota Carmo em Cabo Verde…
Hoje, dia 25 de Abril, na qualidade de cidadão cabo-verdiano que viveu o exílio, presto, através do Adriano, as minhas homenagens aos militares do 25 de Abril.
Luiz Silva
Paris, 25 de Abril de 2015
Luiz Silva
Bonsoir,
ResponderEliminarJe me présente, je suis née Alice Paula Rodrigues Andrade Silva, le soleil de Mindelo m'a vue naître, le matin du 17 décembre 1968.
Peut-être que mon nom ne vous dit rien, cependant je ne suis pas une inconnue pour vous. C'est par votre travail de recherche sur MIGUEL DA CONCEICÃO MOTA CARMO que pour ma part j'ai connu votre nom.
Je ne suis pas sa fille, simplement sa petite fille, je suis la fille de Luiz Andrade Silva et Edith Maria Rodrigues, tous deux natifs de São Vicente (CABO VERDE). Aujourd'hui je suis mariée et mère de 3 fils.
Ma naissance n'a pas de mystère, mais c'est mon ascendance et l'histoire de ma famille qui me tourmente. Etre née quelque part, n'est pas suffisant pour se définir et pour transmettre ses origines, sa propre histoire. J'ai grandi en France, pays où commencent mes souvenirs, mais je n'ai jamais oublié ma naissance, ni les miens.
MIGUEL DA CONCEICÃO MOTA CARMO est un inconnu pour moi, c'est un nom dans mon histoire familiale. Une énigme, certains l'ont aimé d'autres détesté pour lui même ou pour ce qu'il pouvait représenter. J’ai lu tout ce que vous avez écrit sur lui et je le découvre chaque fois un peu plus. Je ne porte pas de jugement sur sa vie, ou ses choix ou ses actes. Il est mon grand père, c'est ainsi.
Je tiens à vous remercier pour tout ce travail, en mon nom, au nom de ma mère et au nom de mes sœurs Adèle Silva Bazas et Aurora Silva.
Très amicalement.
Alice Silva Kingué
Um trabalho extraordinário de investigação rigorosa feita pelo Adriano sem nenhum a priori nem subjectividade. Queira ou não queira Mota Carmo entrou para a História de Cv e dela faz parte: era pois necessário saber afinal quem era este homem, este mito temido, ir aos arquivos etc. Tiro o chapéu ao Adriano por este extraordinário trabalho que CV ou SV deveria reconhecer. Queremos mais sobre outras personagens de que sabemos pouco.
ResponderEliminarMiguel Mota Carmo. Meu bisavô. Nunca te vi mas conheço a tua história. Por dois dos meus apelidos me lembrarei de ti e dos meus antepassados.
ResponderEliminarm excelente questionamento de Adriano Miranda Lima sobre as desavenças de Mota Carmo com alguns estratos sociais elistista do Mindelo: Terá ele tropeçado na poderosa elite mindelense do antigamente? Ninguém saberá. Mas parece que uma cama lhe foi feita!!! É interessante ler as especulações de Adriano Miranda Lima sobre este assunto. Sabe-se que a elite mindelenses era poderosa, elitista e mesmo má língua. Muitos foram os tropeçaram nos degraus do Grémio cujos tentáculos chegavam até Lisboa...
ResponderEliminarInteressante ler breves passagens sobre aquele que foi pai de dois irmãos meus e que faz parte da história desta ilha. Bem haja Sr. Adriano Miranda Lima. Aquilo que tenho lido e ouvido sobre essa figura aguça-me o apetite de viajar ao passado e ver in loco como ele embirrava com as mini saias, apreciar as obras sociais que ele fez e tantas outras coisas mais. O meu pai, Luis Duarte (ou Lulu de Albergue)deve ter também algumas histórias sobre esse homem.
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