Chegado a S.Vicente em 1943 –
tinha eu 9 anos – a minha primeira tentação, depois de saber que me encontrava
numa de dez ilhas que formavam um arquipélago, foi conhece-las a todas…Conheci
algumas nos anos 50 mas tive que esperar até 1969 para visitar as mesmas e as
que faltavam…Por estranho que possa parecer, no entanto, nunca fui a Sta.Luzia!
Creio que, naquele ano as
minhas notas não devem ter agradado a meu pai que, logo em Junho me foi
avisando que me tinha arranjado um emprego para as férias, no escritório do Sr.
Mário Nascimento que, imagine-se, era o agente do “Senhor das Areias”…Não
fiquei muito aborrecido, até porque o Senhor Mário tinha uma filha bem gira
que, por acaso, nunca me ligou nenhuma…E lá fui, sentar-me a uma mesa
minúscula, a passar bilhetes de passagem e documentos de carga para aquele que
era o “paquete” dos navios que circulavam pelas ilhas no transporte de pessoas
e bens, a todos levando a palma com a excepção da velocidade que raramente
ultrapassada as quatro milhas horárias…Mas era um navio quase imponente, ex-lugre bacalhoeiro, de três mastros e bojo
alto, sempre imaculadamente limpo e escovado e com uma tripulação que até
incluía um telegrafista residente, o Sr. José Pedro Afonso, que era meu amigo e
haveria, anos mais tarde, de ser meu padrinho de casamento.
Acontece que devo ter
desempenhado muito bem as minhas funções, apesar da tenra idade, pois quando me
despedi para regressar às aulas no Liceu Gil Eanes, foi-me oferecida uma viagem
no “Senhor das Areias” à minha escolha. Como, na altura, lá namorava a que
haveria de vir a ser minha mulher, resolvi ir até à Brava, sua terra natal e onde ainda estava de férias
e ainda faltava mais de um mês para as aulas…Só que…Enfim, naquela viagem à Brava, o “Senhor das Areias”
iria escalar S.Nicolau e Sal, o que alongava a viagem de forma perigosa mas.
como quem ama não pensa, embarquei nessa peregrinação, uma noite escaldante em
que a expectativa me não deixou pregar olho, apesar do colchão ser óptimo e o
lençol cheirar a lavado…O toque da sineta para o pequeno-almoço apanhou-me
debruçado na amurada tentando pegar peixes-voadores, e fiquei pasmado ao sentar-me
à mesa do capitão, ao lado do meu amigo telegrafista e restantes oficiais de
bordo, para um repasto de cachupa refogada com salsichas e ovos estrelados, leite
com café, bolachas, manteiga, enfim, um autentico banquete, isto se se tiver em
linha de conta que, até aquele momento, o melhor que eu tinha comido a bordo de
um palhabote, fora uma cachupa de "olho-largo", em pé, encostado à casa-das-máquinas
com toda a força para não ser atirado
borda fora…
A Ribeira Brava era uma
vilazinha simpática, silenciosa, pintada de fresco, onde tive a felicidade de
ir encontrar a Mary Melo, uma das mais belas pequenas de S.Vicente, que aí
estava de férias e a quem tirei uma foto que ainda hoje conservo.
Chegados à Pedra-de-Lume, no Sal,
preferi aceitar uma boleia para Sta. Maria, tendo passado a noite no Hotel Atlântico
que os italianos ali tinham construído e que tinha sempre uma tripulação da
Alitália para rendição nos voos para e da África do Sul. Foi muito educativo,
vê-los cozinhar a sua própria “pasta” e o molho de tomate em placas eléctricas
sobre a mesa que ocupavam e, mais tarde, noite dentro, testemunhar as entradas
e saídas, de uns quartos para os outros, das aeromoças italianas, em bicos de
pés descalços, envoltas em lençóis
brancos esvoaçando ao compasso da brisa nocturna, fantasmas brancos que
sugeriam mais promessas do que temores. Um espectáculo…
Mal dormido com a mente repleta
de muitas perguntas e poucas respostas, lá reembarquei no “Senhor das Areias”,
onde, recorde-se, se continuava a comer muito bem e a dormir melhor, para uma
longuíssima estirada entre o Sal e a Brava…Tão longa e tão lenta que muitas
vezes pensei se, para lá daquela onda não iríamos vislumbrar o Brasil…
A chegada à Furna foi, por
isso, uma espécie de regresso ao futuro e um bálsamo para o meu equilíbrio
emocional num reencontro com o mundo, com as pessoas, com o ruído das coisas…A
bordo de um navio relativamente estável mas extremamente lento e silencioso em
que a única coisa que se ouve é marulhar da ondulação baixa, vendo horas sobre
horas, as mesmas caras, os mesmos gestos, a mesma rotina, uma pessoa acaba por
se sentir só no mundo e nem olhar à volta resolve porque de norte para sul e de
oeste para leste a miragem é a mesma: NADA!
Quando, nessa tarde, cheguei à
oficina de Nhô Manelinho, sapateiro, fui acolhido com um largo sorriso...Num
gesto cúmplice foi abrir as portadas da
janela que dava para a casa da minha amada, através da qual, depois de revê-la,
voltei a subir aos céus pouco tempo depois de ter descido à terra!
Não voltei a viajar no “Senhor
das Areias” mas, à fé de quem sou vos digo que, de bom grado, repetiria a minha
peregrinação dos anos 50, do século passado…
Foto - Blog Prais-de-Bote

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