Passaram, lenta e pacificamente, os mais de setenta dias que acabei por ficar em Nova-Lisboa, a convalescer da intervenção cirúrgica...Ajudei as Irmãs Hospitaleiras, que também prestavam assistência num orfanato, a recortar e a colorir bonecos em cartão, com braços e pernas articulados e que se faziam movimentar por um intrincado sistema de fios...As Irmãs diziam que a miudagem adorava aqueles brinquedos mascarados de palhaços, dançarinos e ginastas, em cores garridas, como convinha!
Foi triste o dia da minha despedida, principalmente das Irmãs e do Enfermeiro Anastácio, um angolano tão grande como eficiente que, no entanto, sofria horrivelmente com um calo persistente no dedo grande do pé direito...Era tão grande o desconforto com a calosidade que ia e vinha constantemente, que ele chegou a pedir ao Dr. Abrantes do Amaral que lhe amputasse o dedo! Claro isso lhe foi negado até porque ficaria com enorme dificuldade em locomover-se...Nunca mais soube dele, mas ainda recordo o seu sorriso algo triste e sofredor...
Tive honras de acompanhamento até à Estação do Caminho de Ferro, a tal que ficava do outro lado da rua do cinema Ruacaná e, quando apitando insistentemente, a enorme composição se pôs em marcha fui invadido por um sentimento de nostalgia enquanto acenava a mão àquelas pessoas que, do cais, me correspondiam e que eu sabia que jamais iria rever! Boa gente, simples e dedicada com quem adorei conviver, conversar, partilhar refeições e emoções...Na bagagem trazia um terço de prata e meia dúzia de bonecos articulados para os dois filhos do Cabo de Cipaios de Cazombo, o meu amigo Caputula, um homem quase tão grande como o Enfermeiro Anastácio, ambos de boa memória!
Quando, muitas centenas de quilómetros mais tarde cheguei a Vila Teixeira de Sousa tive o grato prazer de dar de caras com o Chefe de Posto José Ruy que, imagine-se, estava à espera da mulher, África Agripina, que vinha no mesmo comboio, de Benguela mas eu nem sequer vira...Nem às horas das refeições na Carruagem-Restaurante pois, ao que parecia, a senhora enjoava a viajar de comboio e não saía da sua cabine durante a viagem... De facto, a D. Agripina desembarcou algo amarelada e cambaleante, mas exuberantemente loira, perfumada e elegante, ela que, na sua juventude, tinha sido trapezista circense...
Foi azar meu a contrapor à sorte de boleia assegurada para Cazombo: durante cerca de cinco horas tive que suportar, para além do exotismo odorífero da colónia da senhora, a história pormenorizada até aos detalhes mais pueris da sua ausência de trinta dias...Ainda hoje, quando sonho com Angola, sinto as narinas invadidas por aquele penetrante aroma a especiarias orientais, como um caril bem condimentado...
Continua...
Continua...
Fico á espera do próximo capítulo...
ResponderEliminarSerá que não há nenhuma editora interessada em publicar as tuas histórias?
bjs
Paula :)
Este tipo de crónica é um regalo de ler, principalmente quando se serve desta elegância literária. Ainda mais quando o cenário da aventura é essa África, imensa e misteriosa. Já estou como a Paula Simão, que venha a continuação.
ResponderEliminarBondade vossa, bondade vossa...Verdade que me dá muito gozo reviver algumas peripécias da minha passagem por Angola que já deram, até para meu espanto, para 42 crónicas...Vou continuar, sim, até porque não está longe o dia do meu regresso ao Porto Grande...
ResponderEliminarMantenha!
A Paula está à espera do próximo capítulo e eu aguardo os próximos capítulos depois do próximo!
ResponderEliminarAinda bem que vais continuar, pois é um regalo ler aquilo que escreves como diz Adriano Lima
Um abraço, Brotas.