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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

[8784] - SEQUESTRO DO PAI NATAL...


      Noite fria em Tomar, sob céu límpido e estrelado. Saio para ir abastecer o automóvel a uma bomba de gasolina. Suspensas sobre as ruas, figuras de múltiplas combinações bordam a noite com seus perfis luminosos. No ar flutuam as modulações de cânticos difundidos por altifalantes invisíveis. É o Natal à porta, anunciado em toda a sua fantasia coruscante. O movimento nas ruas é a estas horas já quase diminuto, depois do corrupio frenético durante a tarde toda. Foi um vaivém ininterrupto sobre os passeios, lojas com mais clientes do que o habitual, pessoas apressadas transportando sacos e embrulhos. Nesta altura, o poder de compra faz tréguas com a carestia, e o Natal é uma fábula com que o comum das pessoas se pactua, não fazendo caso das denúncias do consumismo desenfreado. Há quem entenda que o verdadeiro sentimento natalício é anestesiado pela banalização de gestos e palavras que nos dias de hoje se automatizam a uma escala sem precedentes com os novos recursos das tecnologias de comunicação: mails, sms, cartões de boas festas formatados pelos sistemas informáticos, etc.
      Com estes pensamentos, paro frente a um sinal vermelho do semáforo, e alguém se aproxima a vender-me o almanaque Borda-d’água. Mas o sinal verde abre e arranco, no rosto do vendedor ambulante ficando a estampada a frustração. É possível que me tenha visto como um cliente certo, que as regras de trânsito lhe roubaram no último instante. Sinto remorso, ainda penso em fazer inversão, mas a manobra é impensável. O meu impulso natalício foi tolhido pelas exigências do código de estrada.
      Chego à bomba de gasolina e encontro um velho companheiro das minhas já longínquas andanças por terras de Angola. Convida-me a tomar um café. Sentados já à mesa, vêm logo as lembranças de África, de dois natais passados num lugar recôndito em pleno mato, em situações hoje inimagináveis pelas gerações actuais. A páginas tantas, o meu amigo queixa-se do consumismo que assola as pessoas por esta data e aponta-me, como exemplo, o saco repleto de prendas.  
      ─ Já sei que daqui a dois dias os meus netos já nem sequer vão olhar para isto, e serão mais uns brinquedos a juntar aos dos anos anteriores, mas que fazer? ─ disse ele.
      ─ Pois é, o que fazer? ─ corroborei a sua interrogação ─ se não surfarmos a onda destoamos dos outros, ficamos mal vistos, não é?
       ─ Claro, mas é nesta altura que sinto nostalgia dos natais da minha infância, na aldeia da Beira Baixa…
       Sem querer interromper a torrente dos seus pensamentos, deixo-o prosseguir: 
       ─ … Olhe, naquele tempo era tudo muito diferente, muito simples, hoje até dói ver tanta “estragação” em coisas de que não precisamos e servem mais para justificar a ocasião natalícia. Lembro-me bem desses tempos, eu miúdo ainda, numa época que era de dificuldades... ─ Uma breve pausa, e aguardo que ele continue.
      ─ … Na minha aldeia, a véspera de Natal era, em certos aspectos, um dia como outro qualquer, sem comezainas e luxos. Durante a tarde, o meu pai reunia uns bons cepos de pinheiro e arrumava-os ao pé da lareira. Explicava-me que nessa noite o fogo não se podia extinguir, porque o Menino Jesus iria acomodar-se junto à lareira. À hora do jantar, o braseiro já estava bem vivo, o que era um consolo naquelas noites invernosas. A seguir, íamos à Missa do Galo e regressávamos a casa na companhia dos meus avós e outros familiares. O meu pai reunia sempre a família mais próxima. A minha mãe punha então a mesa para a nossa ceia, pobre mas algo diferente dos outros dias. O meu avô abria uma garrafa de aguardente de medronho do seu próprio fabrico. Então, a reunião de família se animava com uma conversação viva e alegre em que toda a gente participava, contando-se histórias de outros tempos. O meu avô recordava sempre a memória de outros natais, a presença dos seus pais, a grande satisfação que os invadia na véspera natalícia. Chegava o momento que eu mais aguardava. Era quando o meu pai me dizia que ia nascer o Menino Jesus naquela noite e que ele viria numa estrela para me trazer de propósito uma prendinha. Então, aconselhava-me a deixar o meu único par de sapatos ao pé da lareira, porque dentro deles eu iria encontrar uma surpresa. ─ E o que acontecia depois? − indago, interessado em ouvir o resto de uma conversa de todo inesperada.
      − Ah, vai ver. As horas iam avançando, e o fogo da lareira não parava de ser alimentado para se manter ao rubro. O seu forte crepitar denunciava a presença de uma noite especial. Lá para o fim, os temas de conversa iam rareando, o sono a aproximar-se, e o olhar de todos pregado no brasido da lareira. Dir-se-ia que repentinamente ficavam pensativos, talvez a recordar familiares ausentes ou já falecidos. Mas naqueles olhares silenciosos lia-se a gratidão pela comunhão espiritual daquela noite. Era como se o Menino Jesus fizesse o milagre de reforçar o afecto que nos unia a todos. Eu ia para a cama, não sem deixar de espreitar para o céu, na esperança de descobrir a tal estrelinha que me ia trazer o Menino Jesus. O meu sono era sobressaltado com a alegre expectativa da manhã seguinte. Mal acordava, corria para a lareira e dentro do sapato estava uma moeda de 1 escudo. Para mim isso tinha um significado desmedido. Ainda hoje recordo a singeleza daquela prenda. Mas aquela moeda, pouco dinheiro, significava mais do que o seu valor real. Era a prova real de que tinha havido uma noite diferente na nossa casa. Enfim... naqueles tempos era assim mesmo.
     Então, intervim: ─ Se calhar a solução é sequestrar o Pai Natal, suspendê-lo num limbo qualquer, fora do alcance do marketing comercial, ele que é o seu símbolo mais mediático, inventado pelos americanos. É a única maneira de fugir ao consumismo desenfreado que nos desfoca o olhar sobre o essencial da vida; de fazer vista grossa e ouvidos moucos a essa agressiva publicidade que incita as pessoas a gastar até ao último centavo, e quando não o têm é a crédito.     
      ─ E acha que resulta?
      ─ Não, não resulta, o que eu disse é uma metáfora, é uma brincadeira com as palavras. Porque, de facto, é difícil contrariar a dinâmica social e dos tempos, que é sempre complexa e imprevisível. Até porque, repare, o crescimento da economia depende também do consumo interno, mesmo que o seu efeito seja sazonal, como no Natal e nos meses das férias. Enfim, as coisas não são tão lineares como às vezes supomos, a economia não é como governar uma casa, tem as suas regras, as suas variáveis. Mas é pena que o espírito natalício entre na contabilidade das coisas perecíveis.      
      O meu amigo suspirou e disse: ─ Ah, quanto daria para regressar aos natais da minha aldeia!… seria a única forma de fugir ao atropelo dos sentidos…
      ─ Diz bem, a solução é regressar às nossas antigas aldeias, ─ interrompi-o ─ e mesmo quem não tenha uma pode criá-la dentro de si. Assim seria possível fugir aos clichés, à banalização dos gestos, à mistificação dos sentimentos. Sim, regressar à autenticidade cristã da noite natalícia é possível numa aldeia real ou imaginária. Longe do mundo artificial e supérfluo, perto das coisas puras e essenciais. Aquelas que perduram na memória.
      E foi com estas palavras finais que me despedi do meu amigo, com votos recíprocos de Boas Festas.
                                   
Tomar, Dezembro de 2015
Adriano Miranda Lima

5 comentários:

  1. Amigo Adriano M. Lima

    Se neste belo conto de Natal...fosse eu o seu companheiro do café:

    Beira Litoral:



    Lembr-me de quando era mocinho de calção; encontrar de manhã, no sapato roto, um postal ilustrado com muitos santinhos... " Natal Feliz do teu pai querido" -- Visado pela censura" S. Vicente Cabo Verde 1940 / A única prende de Natal que ,ainda, guardo com muito carinho.

    Boas Festas e Muitas Felicidades

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  2. Felicito o Artur por conservar essa relíquia. "Feliz Natal, do teu pai querido", eis a expressão sublime do sentimento natalício... "do teu pai querido".
    Infelizmente, este meu Natal está a ser assombrado pela trágica notícia da morte do menino de dois anos, nos Açores, às mãos do padrasto, que dele abusou sexualmente a ponto de lhe causar a morte. Por mais que me esforce não consigo afastar esta trágica e inacreditável imagem. Uma criancinha que ainda nem sabia falar para se queixar e se defender... Este meu Natal está a ser terrivelmente inquinado pela morte violenta e suja de uma flor que estava a desabrochar. Outras e muitas mais mortes semelhantes houve contudo pelo mundo fora. Mas esta entrou-nos brutalmente pela porta dentro.

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  3. Amigo

    É caso demasiado brutal para qualquer ser com pingo de humanidade, ficar insensível...
    Não há pena judicial que se enquadre neste tipo de morte!
    Tal como o criança que deu à costa morta numa praia grega...
    Século tragico

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  4. Lindo texto. Costumo dizer que nós éramos felizes apesar da pobreza, pois o dinheiro e o consumo não compram a felicidade. Os bens materiais são voláteis e o que é perene são os valores a felicidade a alma humana. Todo o resto é perecível.
    O Adriano tem que pensar em escrever mais crónicas pois não restasm dúvidas do dom para a arte da escrita e o trabalho de escultor que faz da língua portuguêsa, esta belo e rico património comum.

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  5. Os Natais mais felizes foram aqueles (quase que) sem brinquedos mas com muito Amor.
    Sucedeu aqui uma tentativa de "assassinato" o Pai Natal e o jornalista criador de "Pai Natal morreu" desapareceu incontineneti, sem que a imprensa desse a noticia dele no obituàrio. Jà viram o que seria se isso fosse tomado a sério? Deixo-vos enumerar as conseqüencias.

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